Páginas

23 novembro 2011

Vídeo Cassete

Dezenove horas, chego a casa, Marilene, minha esposa, na cozinha, cheiro de frito, peixe, fome danada, janto, sento no sofá, assisto, jornal, novela, blá, blá, blá, que porra, cara!, todo dia a mesma coisa!, até a tv, o raio da tv, é fastidiosa, chata, novidade é coisa rara, minha mulher é a mesma todo dia, mesmo humor, sorriso amarelo forçando felicidade, mesmas frases, mesmas perguntas, como foi hoje?, mesmo interesse desinteressado, como ela finge!, faço um afago no cabelo de Neninha, nossa menina, mesma cara mimada, birrenta, é verdade, a menina puxou à mãe, barulhenta, repetitiva, teimosa, insistente, cansativa, e de repente... de repente, nada, Marcos, você tem lá coragem de dar um chute em tudo isso?, é preciso ter ovos, meu caro, coisa rara, como teu velho fala, "não tem mais cabra macho, mê fio, tudo homi de saia",

... fala verdade, o confirmo a custo, em minha casa eu que lavo a louça, não sei quem que começou essas coisas, mas mulher agora se acha, temos de dividir tarefas, falam, mínima coisa põem tua roupa na porta, ainda por cima mal ensacada, uns adornos na cabeça, um peso, oh, vergonha danada!, no tempo de meu véio, essa a diferença, mulher apanhava, fazia as coisas de casa e nem galho ela botava, oh, se botasse!, peixeira na mão, olhos sangrando de raiva,


Zack zack zack


... o mundo findava, ali mesmo, sem dó, sem culpa, sem mágoa, afinal ela é que era a culpada, mulher safada!,

e a gente bebe, uns skol, outros cachaça, aqueles mais doidos, resignados, balançam a cabeça, riem de soslaio quando passamos, não entendem, "coitado", falam, e nós, ironia grotesca, deles o mesmo falamos, experimenta, sim, experimenta, seu zé, uma vida a dois em que deixas de saber que metade é que tu és, experimenta!,

e eu...

um dia saí, não vou jantar, assistir, dormir, o mundo?, que se foda o mundo!, se foda tudo!, peguei o ônibus, desci na praia, inverno, noite escura, sombra onipresente,


vuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu


... o vento, a maré cheia, passo a passo, lento, demorado, mas firme, esqueço as havaianas na areia, a camiseta, me entrego, meu Deus!, me entrego!, e lá longe, na linha do horizonte, em instantes, meu corpo da alma se despede, uma última questão, uma última questão, meu Deus, meu Deus, sê sincero, é todo dia o mesmo lá no inferno?, e fez-se silêncio, oh, aterrador!, medonho silêncio!, me ajudem meus reflexos,

vpt vpt vpt vpt

... eu sou do tempo do vídeo cassete, é um luxo, rebobino decidido, sentimento pleno,

vpt vpt vpt vpt

... sabes, mulher, com toda a tirania, não trocaria meu futuro do teu lado por um outro futuro qualquer, tu é linda mesmo.




3 comentários:

  1. Adorei! As onomatopeias, as paradas e principalmente o desfecho :)

    ResponderExcluir
  2. A vida é sempre a mesma, o relógio renova e nada muda.
    Felizmente teve um final feliz.

    ;p

    ResponderExcluir
  3. A vida é um moinho. Ainda bem que as pílulas da felicidade existem... rsrs

    ResponderExcluir

"Seja bem vindo quem vier por bem."