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03 janeiro 2021

Poeminha sui generis

Vem de salto
Toc, toc
Balança pra um e outro lado
E é tamanho o balançado
Que não é mulher
É veado

14 abril 2020

Rimbombom

Rimbombom subiu aos céus
Doido que era, jurava o céu era seu
As nuvens eram algodões
Comprados da farmácia de Nereu
A chuva, um vazamento inoportuno
Foi de seu rosto que choveu
Os trovões, ah!, eram gritos
Tão gritos que a mãe lhe deu
E os relâmpagos - quem o negaria? -
Ah, meu Deus!, também eram seus.

Rimbombom era um doido
Do mais doido que havia
Rimbombava, rimbombava
Mas ninguém, ninguém
Dos mais sãos por esses dias
Da mais alta sabedoria
Teve, de dizer-lhe, a ousadia:
Rimbombom, Rimbombom
Nem o céu nem a chuva
Nem relâmpagos nem trovões
Nada... Nada lhe pertencia.

Rimbombom, Rimbombom
Há coisas que não se tiram a um homem
São tão suas quanto sua vida.

Rimbombom sou eu!


rbcovo
com Samaricaparteira

23 janeiro 2020

Desmedido eu que vivo com medida (de Bertold Brecht)


Desmedido eu que vivo com medida
Amigos, deixai-me que vos explique
Com grosseiras palavras vos fustigue
Como se aos milhares fossem nesta vida!

Há palavras que a foder dão euforia:
Para o fodedor, foda é palavra louca
E se a palavra traz sempre na boca
Qualquer colchão furado o alivia.

O puro fodilhão é de enforcar!
Se ela o der até se esvaziar:
Bem. Maré não lava o que a árvore retém!

Só não façam lavagem ao juízo!
Do homem a arte é:
foder e pensar.
(Mas o luxo do homem é: o riso).

05 janeiro 2020

Dracena

Sinto, às vezes, nas horas mais conscientes
Um assomo do outro mundo
Um abalo repentino, um tremor profundo
E se me parece vago tudo isto e isto tudo. 
De tudo, desta vida, sinto um alheamento sem fim 
E, como se deste mundo não fora, enxergo tudo de fora de mim. 
Não encontro par nem raízes; alguém, porventura, me jogou aqui.
São-me estranhos os modos, as ruas, os risos
As pessoas, de todas as cores;
Deslocadas e tolas as esperanças, todos os amores...
Eu não sou daqui. 
Meu é o turbilhão e o desgaste
A pressa e a urgência de fugir.
De quê? Para onde? Não sei!
Tem de haver para onde ir?

Nas horas mais tristes e nas mais felizes
Turvam-se-me os sentidos
O mundo para num solavanco. Eu parei.
Enquanto isso, os outros se passeiam, diante de mim, frame a frame
E, uma e outra vez, a voz, uma voz que vem:
"Isso não é teu" - acusa;
"Este mundo não é de ninguém". 

Eu murcho.
Não é meu o rouge da dracena?
Não é meu este poema?

04 janeiro 2020

Sobretudo

Amo desta vida tudo
E mais viva mais amarei
A tudo e a todos
A uns e a outros 
A ti e a mais alguém

Nunca amores poupei
Não se poupa o que se não tem
Antes dá-se por completo
Bem querer a quem se quer bem

Amo os desejos torpes
O torpor em vai e vem
As cores - os azuis e os verdes
As paixões grafitadas nas paredes
O vazio, o nada, o nunca, o ninguém... 

Amo os risos - os prolongados e honestos
Os choros - miúdos, sofridos, funestos
As rugas que se erguem fortes e altivas
As horas teimando no rosto convencidas

Amo os maus jantares, as texturas nojentas da comida
Os gritos das crianças na calçada
A pipa que minha infância achou perdida

Amo as mulheres todas da minha vida
Adoro suas almas femininas
Seus trejeitos elegantes mal contidos
A invenção que fizeram do carinho

Amo-as mães, com os ventres rasgados e fecundos
Sua força de dar outro a este mundo
A generosidade acima de tudo

Amo essas almas elevadas
Para quem mais elevado é um filho

Amo as dores nas costas - revelam-me vivo
Os odores nauseabundos do banheiro da escola,
Problemas irresolutos e sarilhos

Amo os poetas, os filósofos incompreendidos
As palavras vãs e as vãs filosofias
As piores ideias - nas piores noites - nos piores dias

Amo os ósculos e os amplexos
Os desfechos abruptos e sem nexo
As casas antigas e sem teto
A dubiedade do reflexo

Amo teu rosto sincero
Tua dificuldade de mentir
As brigas, as zangas, a louça partida
O que sei e o que não sei exprimir. 
As horas na rede, a cerveja gelada
O ócio, o não pensar em nada...

Amo as palavras - as rudes e as meigas
As doces e as amargas
As que machucam e as que confortam
As que doem e as que não importam.
Amo-as pesadas, gordas, grávidas
Dando à luz;
Amo-as recicladas, temperadas, 
Fazendo ou não fazendo jus. 
Soltas, doidas, vagabundas
Sujas, maltrapilhas, imundas...
Amo-as todas
Como a todas as águas do mundo.

Amo tudo
Amar, sobretudo.