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14 janeiro 2012

Cartas a Dolores

        A carta abaixo é a primeira de algumas cartas encontradas por mim quando de uma arrumação no porão de minha casa há um mês atrás. Velhas e encardidas, fechadas numa pequena caixa de madeira, fechadura prateada, entre recortes e edições antigas de jornais e revistas, como que em segredo, lá estavam elas. O pó e o esquecimento céleres as comiam como um micróbio inescrupoloso. 
        O remetente e autor das mesmas, Francisco, seria um suposto namorado de minha tia-avó materna, Dolores de seu nome.
        Consegui a custo arrancar de minha mãe uma ínfima informação sobre a vida da saudosa tia, a qual não cheguei a conhecer. Jovem, fora completamente apaixonada por esse moço, Francisco, culto e bem falante ao que consta, vizinho da nossa família em Esposende, Portugal. Mas, aos dezenove anos, circunstâncias da vida, desígnios do Senhor, minha tia-avó viu-se obrigada a deixar tudo para trás, o amor e o quase noivado, e seguir com meus bisavós para Salvador, Brasil, onde, aliás, minha família vive ainda hoje.
        À época, o mundo tomado pela segunda grande guerra, meus bisavós, o Senhor Raul e a Dona Cidinha de Fão, parcos em recursos, roçando a extremidade mais penosa do miserável, viram uma viagem de navio para Vera Cruz, oferecida pelo prior Meireles, como uma forma irrecusável de transformarem e recomeçarem as suas vidas e arrancaram assim alguns trechos ou pedaços do que seria um outro destino, páginas e páginas de vida, e um pedacinho, nobre pedaço, do coração de Dolores.  
        E é só o que sei para além do que as próprias cartas me vão contando. 


Cartas a Dolores 


        23 de Maio de 1943


        Ontem fui ao mar. E era como se tudo me doesse. Até as ondas revoltas, que não moram aqui dentro, me doíam aqui dentro, nervosas e ligeiras. Sinto-me de ti mais próximo quando vou ao mar. Como uma criança que não mede distâncias te acredito lá atrás, clamando, alinhavando desejável futuro, logo depois do que minha visão alcança. Esforço-me. Se eu conseguisse ver mais além... Um metro! Um metro! Pudessem meus olhos, se desfaria essa cortina infame: espaço. 
        E nesse intento sequioso, ver-te!, frustrado vezes sem conta, encontro a dor. Essa dor não mensurável, corrosiva, d´alma contrariada, obsessiva...
        E vejo um barco surgindo de luminoso sol espelhado nas águas, penso acenar, aqui capitão!, aqui!, me leve, meu naufrágio é nesta terra, mente turva, desvairada, de pó se me cobrem os pés, o tronco, os braços, meu ser outrora pleno-radiante... Aqui!, aqui!, capitão. Não teime, por favor, é longe!, o longe é uma definição, controversa por sinal... Da distância só uma sei, longitude invariável, aqui dentro meu coração bate quarenta graus para ocidente.
        E não aceno, esse barco não tem capitão, esse barco não tem leme, esse barco nem vem lá.


         Do teu Francisco



4 comentários:

  1. Bella historia.Já tens personagens para um romance, Ricardo ;)

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  2. Como o amor verdadeiro fala...Ainda avisou que o namorado era bem falante, mas não o imaginava deste calibre.
    Como teria sido a resposta da tia Dolores...?
    Será que ele escreveu e nunca teve resposta...?

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  3. Gracias, Sophia. São só umas cartas que eu encontrei. ;)

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  4. Obrigado, Luís. Fica a pergunta, sim, como teria sido a resposta da tia Dolores. Vou ver se arranco mais alguma coisinha da minha mãe. Abraço.

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"Seja bem vindo quem vier por bem."