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09 janeiro 2012

O Melro

Pequeno,
tão pequeno
que outra era
a dimensão do mundo,
em minha casa
havia um melro,
bico alaranjado,
negro profundo.

Meu avô dele cuidava,
comida farta, água,
gaiola limpa, grande,
um luxo.
Uma gaiola daquelas,
me ocorria,
custava muito.

O preço não sabia,
imaginava que o equivalente
a um saco de guloseimas,
muito caro por sinal,
comprado na venda do Zeca.
Como havia de me fartar!

Mas, eu também da ave
gostava.
E era um regalo,
manhã cedo, bem cedinho,
ouvi-la cantar,
gloriosa, com orgulho,
como se fora um hino.

Vender a gaiola, nunca!
Fora de questão, o negava
em absoluto.
Tampouco era minha
e meu não seria o lucro.
O doce que me podia render
era pouco,
fraco em açúcar...
A ausência daquele melro,
amigo e companheiro,
seria amargo luto.

Com aquele melro,
altaneiro e vaidoso,
tenor lírico-spinto,
me dei conta, do brilho
que o canto tem,
da brevidade, não da matéria
da gaiola gasta do tempo,
da vida.
Do gozo,
gozado gozo momentâneo,
arrebatamento,
que corre a alma e veia
a um tempo.

E não, eu não era mudo,
suspeitosa mãe,
o assoberbado melro, negro,
o sabia, batia a asa
ao meu pensar,
solene, soltava um desafio

Tchri, Tchrriiii, tiiiiii, tiiiiii, tititiiiiiii

Eu sentava-me na pedra fria,
embaixo,
onde o mundo permitia
e o julgava compreender...
Umas vezes falava de amor,
outras de filosofia,
Outras de outras agruras da vida,
dos pais, avós, dos filhos,
de como as coisas eram para lá
da longínqua linha...

Nunca, em esses instantes,
lhe disse palavra alguma.
Para ele só meus olhos,
peixe-morto, uma ou outra
coisa diziam.
Falar, meu Deus, tão cansativo!

Uma hora o mirando
voltava para dentro,
pés gelados, inverno rigoroso,
minha avó trazia a mamadeira
e me refugiava
embaixo da velha mesa de costura
encostado a uma perna,
mão nos cachos do cabelo.

Na manhã seguinte, ao acordar,
iria lá, apreciar o canto leve da ave,
estudá-lo.
Criança estuda muito as coisas,
examina tudo até que entenda.

E assim foi, muitos dias,
muitos meses, anos, sei lá,
os passei defronte dele,
vigiando seu viver, os cuidados
de meu avô.
Dia após dia fazia uma vistoria,
comida, limpeza, água...

A liberdade?
Liberdade, meu Deus,
essa ave a que nunca dei um nome,
falha minha, conquistou-a um dia...
Numa manhã,
dei conta, se esqueceu de me despertar,
vesti-me, calcei as botas
e corri a acordá-la.
Lá não estava...
Meu avô pegou a gaiola, limpou,
"Foi para o céu", falou.
E à noite, um pouco antes de dormir,
minha avó me foi ao quarto,
"olha o que trouxe",
e de sua mão soltou um saco,
de doces, salgados, confeitos...






2 comentários:

  1. já disse que adorei o blog modificado. tá lindo=** beijos.

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  2. O saco de guloseimas comprado na venda do Zeca fez-me viajar no tempo. De imediato me lembrei de uma queda aparatosa que tive contigo no caminho ao lado. Tu eras uma espécie de velocista lol

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"Seja bem vindo quem vier por bem."