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24 março 2012

Um copo de uísque

        Cigarro vem, cigarro vai... Um cigarro puxa outro, puxa cerveja, álcool, uísque e com a bebida conversa, maioria das vezes quezilenta, desnecessária, "in vino veritas", diziam os romanos, eu digo, gente beba perde o tino e tem troço que uma vez perdido... Valha-me Deus!
        Artur nunca bebera nem fumava... Fumar, fumavam os tios, os primos, era rapaz recatado, crente, desses que só bebe os ensinamentos da sagrada escritura, ávido, guloso de conhecimento divino ou salvação, mas hoje, hoje é um dia especial, os pais fazem cinquenta anos de casados, a irmã voltou da Europa, cinco anos fazendo a licenciatura de teologia em Oxford, que orgulho, e sei lá, más almas, dessas que corrompem o assoalho espiritual como cupim, insistem, deixam a maçã logo ali qual serpente o tentando, fazem mil e uma considerações, "Ah, este uísque de malte vinte anos!", "Ah, sim, senhor, muito bom, um bálsamo para a mente e o espírito", e Artur, tantos anos se escusando, se forçando a ser puro, baixa a guarda, pega um copo sorrateiro, aproveita a distração geral e serve um pouquinho, só um pouquinho, Jack Daniels, se perguntarem, "a cor se assemelha, falo que é guaraná", e sem hábito, como criança descobrindo, dá um gole profundo entre as alheias baforadas de cigarro, tosse, coitado, é preciso fôlego, ser homem, como diz o Tio Miguel, "a bebida é que nem mulher, exige do macho pegada e quem não tem 'se vá foder'".
        Todo mundo o olhou, tosse inesperada, como raio se engasgou, um e outro assim pensando, e Artur, meio espantado, sentia um calor despropositado, inverno, chuva caindo, a visão meio embaçada, e o pior nem foi isso, acordou no dia seguinte em cima de vomitado e da véspera nada lembrava, "Ai, Deus, demência essa, que não sei como até aqui vim, que me enjoei sem fim, Ai, Deus, ainda é cedo, viver me deixes por muitos anos", Avé-Maria, Pai-Nosso, pegou o pobre no Rosário e rezou com invulgar afinco, "se foi do uísque me perdoa, isso eu não mais repito", mas, Deus, é tarde, dizem lá na minha terra que a cada palavra dita não há resgate que se faça, e eu modestamente acrescento, cada ação de um homem fica lá atrás no passado, mas não há futuro que apague, e o pobre Artur, inocente, da noite anterior nada sabe, sabe só que uns e outros dele riem e falam, e se apega, meu Deus, como ele se apega!, "dai-me, Deus, a graça, me revelai, a este pobre servo, as memórias da noite em causa", e Deus, vagaroso, mas magnânimo, após duas semanas lhe trouxe uma lembrança, disse Artur, meu Deus, nesses minutos de inconsciência, tinha por Fábio atração tamanha que todo dia tocava punheta, "não pode ser, não pode ser, tal coisa é descabida e completamente improvável, tenho quarenta e sete anos, sou virgem ainda, mas daí a ser veado!" Meu Deus, quem sabe? Os romanos diriam, com vinho se fala verdade, mas Artur não aceita, e tá de tal forma inconformado com essa peça que o destino lhe pregou que só uma solução lhe achega, "fale eu no culto, peça atenção, não fui eu quem falou, falei co a boca do cão", mas o pior, ele sabe, todo mundo sabe o que ouviu e coisa do cão é meio mentira, meio verdade, será, meu Deus, que tem no mundo cabra gay pela metade? Sei não, pelo sim, pelo não, uísque não mais adentra o pobre que receia ser adentrado.



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"Seja bem vindo quem vier por bem."