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08 abril 2012

Esquisses d´un monde perdu- capítulo 3- Um problema de junta

Peça de ato único       

        Interior. Manhã. Consultório.

        No início da cena o cenário é simples, um palco vazio. O consultório vai tomando forma lenta e vagarosamente. Primeiro dois homens carregam uma escrivaninha e a colocam no centro da cena, depois um terceiro assistente coloca uma cadeira atrás da mesa e um quarto, uma outra cadeira na frente da mesma mesa. Uma moça coloca um cesto de papeis à esquerda. Mais tarde, um outro assistente empurra uma maca até à direita. Segundos depois entram dois indivíduos, um senta-se numa cadeira na frente à esquerda e o outro, à direita. Ambos vão gesticulando e dando ordens aos assistentes que atarefados preparam o cenário.

Homem à esquerda- Aí. Sim, aí. Fundamental o cesto de papeis estar à esquerda. Se ela é direita tem mesmo de ser.

Homem à direita- Não, não, não. A gente ainda nem sabe se ela é ou não destra. Coloquem aí. Isso, embaixo da mesa. Sim, ótimo. Ótimo.

Uns instantes depois entram dois assistentes trazendo uma médica nos braços, rígida e imóvel. Parecem hesitantes e desnorteados.

Homem à direita- Aí. Sim, sim, em pé. Atrás. Isso.

Homem à esquerda- Não, não. Sentada. Mais cômodo. Isso.

Homem à direita- Em pé. Em pé.

Parecem chegar a um consenso e a doutora fica em pé. Entra uma moça de aspecto frágil e inseguro.

Moça- Bom dia, doutora.

Doutora- (descongelando) Bom dia. É para o concurso?

Moça- É sim.

Doutora- Sente-se, por favor. Já fez todos os exames?

Moça- (passando-lhe os exames médicos) Sim, doutora. São esses daqui.

Pausa. A doutora abre os envelopes, lê, examina...

Doutora- Desculpe, mas pelo que estou vendo... Nessas condições não podemos admiti-la como professora. Doze leucócitos por campo, está completamente fora dos nossos parâmetros.

Moça- (tentando argumentar) Mas...

Doutora- A gente não pode escolher os alunos, entende? Os níveis de Ph da urina, o tipo de sangue, o QI, etcetera... Mas os professores a gente pode escolher. E com essas taxas, menina, você nunca chegará a efetiva no município. Por que é que não faz o concurso dos Correios? Eles não pagam mal! E ser carteira não é mau de todo, menina. Gari também é uma boa ideia. Ganham razoavelmente bem, passam o dia fora... Trabalhar ao ar livre é uma bênção. Pense bem... Pense bem...

Moça- Mas eu estudei para ser professora...

Doutora- Professora! (ri) Oh, menina! Oh, menina! Professora! Com essas taxas?! E mesmo que suas taxas fossem as mais perfeitas do mundo... Você quer trocar sua sanidade mental por cerca de mil reais mensais? Você depois de ser professora, menina, nunca mais tem um minuto de sossego. É os alunos que não dão descanso, perguntam, questionam, têm dificuldades, é o planejamento das aulas, que você vai fazer onde? Em casa... É os pais dos alunos reclamando das notas dos filhos, mal educados e mal instruídos, o diretor fazendo pressão, os pagamentos no final do mês que não saem, os conselhos de classe... Olhe, quer um conselho?... Com essas taxas você é admitida em qualquer confecção e não tem metade das chateações que tem um professor. Acredite que é verdade.

Moça- Mas eu quero ser professora, doutora. É o meu sonho desde criança.

Doutora- Vai ter de me trazer um exame com outras taxas, então. Bem melhor, menina... Bem melhor... Veja bem, aqui apresenta um Ph na urina de 8,5, ou seja, você, possivelmente, está com uma infecção urinária. Se a admitisse agora em que condições você iria amanhã para uma sala de aula? De dois em dois minutos estaria no banheiro e os alunos, coitados, ficariam sem a matéria. Não podemos hipotecar o futuro das nossas crianças. E, desculpe, mas é verdade, alguém com histórico de infecção urinária não é bom professor. Todo mundo que seja doente não é um bom profissional. A doença impede o bom desempenho.

Nesse instante entra uma auxiliar administrativa.

Auxiliar- Doutora, só para lembrar que está na hora de tomar sua insulina.

Doutora- Obrigada, Geisy. Obrigada.

A auxiliar sai.

Doutora- Claro, menina... Claro que há exceções. (breve pausa) Como eu gostei de você... Vamos ver se damos um jeito. Desculpe, é só um momento. (pega o celular, marca o número) Alô! Abreu? Alô! E aí, tudo bom? Ah, sim, sim... Olha, vem cá na minha sala, por favor. Sim, traz. É, acho que sim. Até já. (para a moça) Recorrendo a um amigo. Acho que vai ajudar.

Nesse instante entra Abreu. Veste um fraque vistoso, gravata colorida, mala de executivo rígida cinza prata.

Abreu- (apressado) Bom dia, doutora. Bom dia... (pousa a maleta sobre a secretária, abre, tira alguns recipientes plásticos com urina) Vamos ao que interessa. Qual é a profissão, doutora?

Doutora- Professora.

Abreu- Professora. (enquanto examina os recipientes) Professora... Professora... Aqui está. O mais indicado é esse. Tudo normal, nenhum nível alterado, ph, leucócitos, aspecto... Perfeitamente saudável... Repare que a urina é quase incolor, límpida, nada de turvo, nem um amarelo mais escuro ou carregado. Aqui tem uma ficha com os dados do doador, formação, educação, QI, histórico de saúde... É o doador perfeito. Perfeito!

Doutora- E tá a quanto?

Abreu- (demora uns segundos, hesita, parece fazer cálculos mentais) Esse, assim nessas proporções, bem conservado, acabado de colher, na temperatura ideal, ficará por uns... Duzentos reais cada dois centilitros. É o melhor que posso fazer. Duzentos.

Moça- Posso passar no crédito?

Abreu- Pode. Pode sim, moça. (pega a máquina de cartões) A gente está prevenida. Ando sempre com essa joiinha. Qualquer coisa... Resolve tudo.

A moça passa-lhe o cartão.

Abreu- No vencimento, certo?

Moça- Sim.

Ele insere o cartão na máquina, digita o valor.

Abreu- Por favor.

A moça digita a senha. Os homens, o da direita e o da esquerda se levantam.

Homem à esquerda- Parou, parou, parou! Peraí, gente... Tá tudo errado!

Homem à direita- Vixe, minha nossa senhora! Ui, ui, ui!

Homem à esquerda- Duzentos reais, dois centilitros de urina?!

Homem à direita- Um copinho de mijo?!

Homem à esquerda- Pelo amor de Deus!

Vão se aproximando um do outro no centro do palco.

Homem à direita- Tá tudo fodido, meu irmão. Tudo fodido!

Homem à esquerda- E o pior é que foi a gente... Foi a gente que criou essa coisa... Essa coisa toda é obra nossa!

Homem à direita- Vixe! E a coisa tá tão viciada que não dá nem pra mudar.

Homem à esquerda- Mudar?! (ri) Pra mudar tinha de começar tudo de novo. Trabalho que só o diabo!

Homem à direita- Mas não tem outro jeito, meu chapa. Não tem.

Homem à esquerda- É, meu irmão, o problema é sério mesmo. É um problema de junta.

Os dois em uníssono- “junta tudo e joga fora!”

Nesse instante entram diversos assistentes que começam a retirar todo o cenário. Retiram a mesa, as cadeiras, o cesto de papeis, a maleta de Abreu e, inclusive, os demais personagens. O Homem à direita e o à esquerda saem. Entram instantes depois. Param no centro da cena.

Homem à direita- Harmonia é isto.

Homem à esquerda- Não sei nem pra que você inventa!

Homem à direita- Fico sempre pensando que podia fazer melhor...

Homem à esquerda- Difícil, meu irmão. Melhor, só noutra sala.

(cai o pano)



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