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04 dezembro 2012

Cartas a Dolores



6 de Janeiro, 1946

        Meu coração como vai? Como vai? Como vai? Como vai? Bate certo, certinho, mas sem força, sem força, desanimadinho... Meu coração como vai? Como vai? Como vai? Como vai? Precisa, Dolores, de teu mimo.
        E é nesse ritmo, musical, de improviso, que meu ser vai e se anima, acredita és meu destino. Não desisto. Deus quer assim. E assim eu o quero também. Dê-me ele forças e te esperarei por toda a minha vida. Toda. Sem exagero algum. Amor, Dolores, é isso. E nem teu silêncio e indiferença me demoverão. Não. Acredita. Não me demoverás. Sei por que o fazes. Mas sei também que me amas.
        Eu sei! Não se faz preciso que o digas ou grites. Não tenho ouvidos para os que do contrário suspeitam ou afirmam. Eu sei do beijo que demos, das mãos apertadas um no outro, das juras que nos fizemos... Eu sei. Eu sei. E não foi vão tudo que vivemos. Não foi acaso ou despropósito. Não foi.
        Se soubesses a saudade que me invade de teus modos! Se soubesses das minhas tristezas quando lembro teu brilho nos olhos!, o teu sorriso, aquele discreto revelar, o corar gracioso de teu rosto fino quando murmuravas me amar, o teu pender de cabeça tímido, essa hora que pretendias te esconder, amo-te, dizias, e teu pestanejar nervoso te devolvia num outro instante às feições do presente, eu, tomado de teus jeitos e feitiços, absorvido por esses lances de magia, duvidando de que aquilo mesmo acontecia- tu- abraçava-te , apertava-te com a força de quem te queria esconder aqui dentro de mim, com a força de quem te queria engolir, dizer “é minha, é minha”, e te confirmar assim mesmo, morta, morta de amores por mim.
        Dolores, já há muito tempo não sei de ti. Muito mesmo. Tormenta. Quero e tento, juro, me abstrair disso, do quanto te lembro. Não consigo. Dessa intenção eu desisto. Dá-me, amor, repito, um aceno, manda por alguém uma palavra, uma lembrança, qualquer coisa que quebre esta angústia do tempo.
        
        Minha irmã já nasceu. Vó tinha razão- é mesmo uma menina. E até seu batismo já aconteceu. Não fui eu o padrinho. É pena. Nem consegui que seu nome fosse o que pretendia. É Maria. Tem os olhos grandes de minha mãe. O nariz é de meu pai. Gordo e achatado. O sorriso não é de ninguém. Ou melhor, se de alguém fosse, seria teu. É linda. Às vezes fica comigo, quando minha mãe vai à padaria. Ela gosta de mim. Sorri, sorri, sorri. Adoro vê-la sorrir quando dorme. É para os anjinhos, diz minha mãe. Eu imagino sempre que é para ti. 

Do teu Francisco.



        * Essa carta vem no seguimento de outras com o mesmo título, Cartas a Dolores. Como o narrador afirma no início, são cartas enviadas por Francisco, o namorado de sua tia-avó Dolores, para a própria Dolores, que partira de Portugal, por época da segunda guerra mundial, para o Brasil, mais concretamente, Salvador da Bahia, deixando esse fervoroso amor para trás. 

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