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06 junho 2014

O infeliz

        Zenão, carecido, criado e nascido em dificuldade tamanha, levanta de quinze para as quatro, pão de três dias com água no café da manhã, dois quilômetros a pé até à parada de ônibus. Lotado. Tem vezes nem para. Tem vezes chega atrasado. O patrão reclama, desconta no salário...

        "Mas, Seu Firmino, ainda na sexta-feira passada fiz três horas extras. Hoje cheguei atrasado só vinte minutos."

        "Você vai comer hoje do que comeu num dia velho retrasado? Não vai. Sexta-feira, que você fala, foi um caso especial."

        Todo dia é um caso especial, nasce bebê, morre defunto, surgem novas insólitas, crônicas de outro mundo. Todo dia tem perfume, que não se repete. Em suma. Tem prova de aritmética, filosofia, teoria, rasga o céu um cometa. Cada dia um problema. Monge, padre, buda, asceta. Viagra, sunga, mulher, punheta...
        Enche a cara no fim do expediente, fecha o bar com Seu Tião, reclama da vida, segue pra casa, as sombras se animando, as ideias entorpecendo. Dona Zefa abre a porta, mainha sofre!, bota na cama, "meu menino", como gira, balança, rodopia!, o mundo dele, como a luz o incomoda e cega, o arrelia.

        "O pai dele morreu muito novo. Não conheceu ele sequer. Eu estava grávida de seis meses... Uns homens pararam aí na porta, ele estava com Seu João, e deram uma meia dúzia de tiros. Não fazia nem um ano que a gente casou."

        Dona Zefa não quis homem mais nenhum. Pra quê? Lavar roupa, botar comida na mesa, apanhar?... O menino cresceu sem pai, solto, até tarde, dez, onze da noite, desde pequeno, que nem gato de rua, que nem cachorro vira-lata. Mainha trabalhava no restaurante até meia-noite, lavava prato, varria. Os avós eram doentes, os vizinhos nem aí... Menino dos outros é menino dos outros, os outros que se aguentem.

        "Minha senhora, seu menino não quer saber de estudar. Não faz trabalho de casa, não obedece nada do que a gente diz..."

        Não fez nem a sexta série, não aprendeu a ler... Assinar?... Assina só o primeiro nome: José. Garranchudo, torto, confuso... Melhor? Pra quê? Nasceu doído, sem-vontade maior do mundo, desnecessário, o pulmão preguiçoso, deprimido, os sorrisos brotando a custo, esquivos, raros, resumidos...

        "Seu filho está muito doente. Descobrimos um tumor no fígado... e, pior, parece ter-se alastrado e comprometido parte do estômago e do intestino. Por isso as dores que ele vem sentindo."

        Deram uns meses de vida. Quatro, cinco. Não passaria disso. Mainha triste, chorosa, é filho!, pobre destino. E o tempo, lento, penoso, se esvaindo. Mas um ano depois Zenão ainda era vivo.

        "Quem foi o médico, minha senhora? Vocês viveram esse tempo todo nessa agonia e ele não tem nada. Dor de barriga todo mundo tem. E bebendo assim... Esse fígado ainda está bonzinho. Fígado bom, rapaz!"

       Os olhos de mainha brilhavam, que alegria!, e os lábios, tremidos, soltavam baixinho: "foi a santinha, foi a santinha. A santinha sempre esteve do meu lado. Foi assim na cirurgia, foi assim na queda de vóinha... Obrigado, santinha, obrigado, santinha..."

         Santinha presidia nosso mundo. Vivia a meia luz sobre o móvel de sala, atenta a tudo. Nesse dia cheguei junto dela e disse num sussurro: "Santinha, na boa, qual é a sua? Até quando a gente vai continuar pagando as dívidas desse infeliz?"

        A santa ficou quieta, mas da cozinha mainha gritou: "Enquanto eu for viva não quero ninguém dessa casa com o nome no SPC!"






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