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14 setembro 2014

Espelhos



Um homem e uma mulher no meio da cena, de costas, sentados em pequenos tamboretes. Meia luz. Diante deles, espelhos de metro. No chão, duas pequenas bacias com água.

Ela- Algum dia temos que fazer isso. Algum dia ela vai saber. Melhor saber por nós do que pelos outros, como aconteceu comigo. Não foi fácil, sabe?

Silêncio. 

Ele- Estamos apenas a piorar a vida dela. (breve pausa); E esta merda deste pó que não sai!

Ela ajuda-o. Passa água na face dele.

Ela- Tinha até esquecido como você era... (agarra o queixo dele, olha-o com desprezo)

Ele- Há vinte anos atrás decidimos deixar de ser brancos. Agora nem sei como me sinto. Queríamos um futuro melhor para ela. Nada de preconceito, nada de piadas... Lembra? Não está um pouquinho tarde para voltarmos atrás? (encara-a); Eu mesmo já não me vejo branco. Desaprendi de ser branco, acho. Meus amigos são negros, meus colegas de trabalho são negros, meus clientes... Esses vinte anos fizeram de mim negro. E Patrícia é negra. É a nossa princesinha, a nossa neguinha, a nossa neguinha... Linda. Coitada... Quando souber...

Ela- É melhor assim.

Entra Patrícia. 

Patrícia- Pai?... (curiosa); Mãe?... (pausa; olha-os, curiosa; de lado; eles ficam imóveis); Mãe? (breve pausa) Que é isso? (olhando as bacias com água, aninha-se); Vocês estão diferentes. 

Ele- Brancos. 

Pausa.

Ela- Nós somos brancos. (levanta, vai até à boca de cena); Você é branca. A gente escondeu isso estes anos todos, mas não faz sentido continuar essa mentira. Você tem de se aceitar tal como é. Você tem que aceitar que seu cabelo não é encaracolado (soltando os cabelos dela), que a sua pele tem um tom claro (passa água na cara dela), que é branca caucasiana (coloca o espelho diante dela), mas que não é pior que ninguém por causa disso... Do que ninguém! Ouviu? Ninguém! Quem disse que negro é mais bonito que branco? Quem disse que o negro é mais gracioso? 

Patrícia- Mas, mãe...

Ela- Mas, nada. O mundo é de todos. (senta; continuam lavando a cara)

Patrícia- E Eduardo? 

Ela- Eduarda? Ela vai entender.

Patrícia- (junto da mãe); Por que está se referindo a Eduardo no feminino?

Ela- Ora, Patrícia! Que cegueira é essa, menina? (olha-a nos olhos)

Patrícia- (chocada) Não acredito. (afasta-se da mãe); Eduardo é uma mulher? E você sabia esse tempo todo?

Ela- Todo mundo sabia, Patrícia. Eu sabia, seu pai sabia, os vizinhos sabiam! Eduardo é uma mulher, menina. Tão mulher como eu. (continua limpando a cara) Como é que você nunca percebeu?

Pausa.

Patrícia- Eu odeio vocês! Odeio! Odeio! Odeio! (grita junto deles) Odeio! Ouviram? Eu odeio vocês! Odeio! Odeio! Odeio! Vocês são cruéis! Vocês não são mais meus pais! Vocês não prestam!

Ele e ela continuam se limpando. Olham-se no espelho, indiferentes.

Patrícia- (gritando); Ouviram?

Pausa. Senta-se num sofá, do lado direito. Entra o namorado. 

Namorado- Oi.

Todos param por instantes. 

Namorado- Que aconteceu? O seu rosto...

Ele e ela cochicham. 

Namorado- (sentando no recosto do sofá); Está tudo bem? (faz um afago no cabelo dela, ela esquiva-se

Patrícia- Eu já sei de tudo. Eles contaram. Obrigada por me ter feito de otária este tempo todo. Obrigada. (aplaude, irônica; levanta-se); Obrigada!

Pausa.

Namorado- Foi só uma vez, isso com Júlio. Eu juro. 

Patrícia- Ahn? 

Júlio- (entrando) Mentira, mentira. Foi umas dez vezes... E ele gostou!

Namorado- Gostei nada! 

Júlio- Ai, ai, ai... Tem gente não se assumindo nesta sala. 

Namorado- (ameaçador) Vou te dar umas porradas!...

Patrícia- Parem! Saiam daqui. Não quero ver vocês. Saiam!

Breve pausa.

Júlio- Prima, como você está brava! (irônico; muda de tom - espanto) E pálida!... (examina-a); Branca!... Que vergonha! Você embranqueceu! 

O pai e a mãe continuam cochichando no fundo da sala, se lavando.

Namorado- Foi plástica? 

Júlio- Quanto custou? 

            Patrícia- Caiam fora daqui! 

        Júlio- Nossa, como você ficou sem graça. Não tem plástica que dê jeito nesse humor, não, viu?

            Patrícia pega uma bacia com água, agarra os cabelos de Júlio, passa água na cara dele.

         Patrícia- Você também quer fazer plástica? Quer? Quer? Fácil! (esfrega a cara dele) Olhe! Olhe! (pega o espelho, coloca diante dele)

Namorado- Que bruxaria é essa? 

Júlio- Noooossa! Eu sou igual ao Michael Jackson!

Patrícia- Você é parvo, Júlio?

            Júlio- (se olhando no espelho) Está aí, em mim ficou bom. Que tinta é essa, prima?

            Patrícia- Você não entendeu?

           Júlio- Não. Entendeu o quê? 

           Patrícia- Você é branco. Branco, branco, branco. Eu sou branca. 

         Júlio- Ai, para, prima! Você leva demasiado a sério essa coisa do teatro. Mas pronto, eu hoje estou de bem com a vida, vou ser branco. Você quer que eu seja quem? Já sei, um anão. Você é a branca de neve. (riso)

Patrícia- Você é branco.

Júlio- Pronto, está bom, eu sou branco. Não posso rir de qualquer besteira. Veja minha pose seriedade. Assim.

Batem à porta. Entra uma moça com uma prancheta e caneta.

Moça- Boa tarde. (apresentando-se) Juliane, estou fazendo o levantamento do censo de 2010, do IBGE. São só umas perguntinhas. Coisa rápida. Quem é o proprietário?

Patrícia aponta os pais no fundo da sala.

Moça- Posso? (fazendo menção de juntar-se a eles)

Patrícia- À vontade.

A moça dirige-se até eles. Patrícia, Júlio e o namorado ficam à espreita. Os pais de Patrícia continuam de costas.

Moça- Boa tarde.

Ele- Boa tarde.

Moça- Este domicílio é de sua propriedade?

Ele- É, sim.

Moça- Provisório ou permanente?

Ela- Permanente, menina. Faz mais de 30 anos não saio daqui para nada. Vou, compro o pão de manhãzinha, e volto. Meu marido é muito possessivo.

Ele- Possessivo?!

Ela- Não me dá trégua. Sim, possessivo, sim. Quer que passe os dias olhando para ele. Se eu ligo a tv, resmunga, fica só perguntando "você gosta disso? Novela? Aff, homens efeminados, não têm nem barba". Não tenho sossego.

Ele- Ah, para de queixa. A menina é do IBGE, não é da polícia, nem da justiça. E eles não têm jeito de homem mesmo.

Na frente da cena...

Júlio- Ai, gente, esse amor de velho é muito fofo! Ai, Deus, como eu queria ter um amor assim! (olha o namorado de Patrícia)

Patrícia- Que amor? Deixe de besteira! Eles não se aguentam, isso é que é verdade. Minha mãe acha o velho um porre. O velho acha a velha o maior saco. Só vivem juntos por imposição. Falta de grana para alugar um apê e se mandarem.

Namorado- Ah, mas é bonito essas brigas. Amor tem briga, Paty.

Patrícia- Não me chama de Paty. Ou ainda quebro tuas canelas.

Ao fundo, no centro da sala...

Moça- O domicílio é próprio, alugado?...

Ela- Próprio, menina. Próprio de gente besta.

Ele- (atalhando, zangado) Próprio de gente sem futuro! Gente que não mede o que fala, nem o que faz. Gente que fala de barriga cheia, sabe?

Ela- Barriga cheia! Faz mais de mês a gente não tem nem uma mortadela na geladeira. Ah, vocação para ser pobre! Não tem nem onde cair morto, mas vive com essa cara feliz de lesado. Passa necessidade, mas é feliz. (riso) Que ridículo!

Moça- Está paga já a casa ou ainda estão pagando?

Ela- Pagando, menina. Meu marido nunca teve vocação para pagar a pronto.

Ele- Uma merreca.

Ela- Uma merreca, mas pagando. Já tivemos uma casa própria... Mas perdeu no jogo.

Ele- Ah, não! Agora você foi longe demais! Perdi uma pinoia! Me roubaram! E você foi conivente com isso tudo. Não se faça de santa, não. Quem foi que ficou com a casa, quem? Sua mãe!

Na frente...

Júlio- Ai, gente, se fosse duas mulheres já estavam agarrando os cabelos uma da outra.

Namorado- Seu Sebastião é careca.

Patrícia- Cala a boca, os dois!

Novamente no fundo, ao centro...

Moça- Qual a cor ou raça das pessoas da casa?

Ele- Negros. Todos negros.

Ela- Brancos. Todos brancos.

Encaram-se.

Ele- Negros.

Ela- Brancos.

Ele- Negros!

Ela- Brancos!

Pausa.

Moça- Devo considerar pardos?

Na frente...

Júlio- Ai, gente! Essas questões de cor são tão complicadas. Quando era menino apostei com meu vizinho que a porta de nossa casa era marrom. Ele dizia, vermelha. Apostei uma pipa. Perdi. Só depois é que descobri que era daltônico.

Namorado- Eu não distingo azul de verde.

Patrícia- Eu distingo até cor de jumento.

Breve pausa.

Os dois- Cor de jumento? E é como?

Patrícia- (rindo); Vocês foram feitos um para o outro mesmo.

No fundo a moça despede-se dos pais de Patrícia. Na saída...

Patrícia- Moça, esse censo aí não tem senso nenhum. Esses dois são uns mentirosos. Repara, moça, eu sou branca.

Júlio- Eu também. Olhe. "Thriller, thriller night". (ensaia o moon walk)

Namorado- Eles são brancos.

Patrícia- Sim, idiotas e brancos.

Júlio- "Cause this is thriller, thriller night."


 Nota: o autor desta dramaturgia considerou ajeitar a formatação do texto, mas estava completamente sem saco. Qualquer reclamação, por favor enviar, com identificação, para o seu representante em Brasília, Antônio Neves da Expectação, Bairro Papangu S/N, 73015-003.

















Um comentário:

  1. Uma peça de teatro onde todos podemos sentar-nos.Cada pessoa representa à sua maneira.
    Penso que os nossos dramas não se encaram de costas mas num frente a frente e de olhar terno e atento.
    Nem sempre temos juventude mas sempre teremos amor e carinho para dar e receber. Precisamos de sabedoria para viver com pessoas maduras.

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"Seja bem vindo quem vier por bem."