Rouge

Estou sentado, pensamento enfadonho, triste, cansado de mim mesmo, às vezes, sim, às vezes, queria, sei lá, sair, sair de mim, outra vida, outra cabeça, memórias, ilusões diferentes, e ela chega, brava, sumptuosa, confiante, firme, beija-me, beijo roubado, gostoso que é, e aí, tudo bem?, pergunta, eu olho lá longe, coisa nenhuma, engulo, vontade de dizer "tudo bem uma merda!", controlo, respiro, respira fundo, cara, fala a vozinha, aquela vozinha onipresente, conselheira, num recanto da minha cabeça, por que chegaste tarde?, solto, oh, amor, desculpa, o trânsito, você sabe, sei, sei, todo dia o trânsito, todo dia, juntando tudo o trânsito já me roubou toda uma vida, são dias, semanas, meses, sem qualquer espécie de exagero, se fizesse as contas, oh, se eu fizesse as contas!, quantas vezes o trânsito não serve de mentira?, penso, sorriso, meus lábios travestidos de alegria, já estava quase indo embora, eu sei, desculpa, não é por nada, não, mas nunca esperei tanto por ninguém, e não vale a pena esperar?, depende, aí me visto de malandro, puxo a camisinha do bolso, mostro, olho, você está a fim?, tem um motel ali do outro lado da pista, Sensations, o nome, pausa, sua cabeça roda, pra cá e pra lá, entre sim e não, culpada, oh, como ela se sente culpada por me ter deixado esperando, e eu, astuto, perigoso, uso essa espera, essa culpa como trunfo, vamos!, falou, puxou minha mão fingindo firmeza, insegura que está, a pobre, namoramos faz cinco dias apenas, muito tempo, muito tempo, tem gente que é no primeiro encontro, nós aguentamos muito, sexo, meu Deus, está na nossa natureza, e eu, fingido, hipócrita, ainda lhe pergunto, tens certeza?

Atravessamos a pista quase correndo, semáforo rouge, carro freando, saiam daí, seus merdas, gritou o condutor, estirei o dedo, vai tomar no cu, gritou ela, oh, god, tem horas na vida, cabeça desvairada, loucura, a gente se acha dono e senhor do mundo, o velho, cinquenta anos, cinquenta anos é velho, freou mais na frente, deu ré e parou do nosso lado, vocês falaram o quê, seus filhos da puta?, vociferou, gritou, esculhambou, Marta ainda fez menção de ripostar, eu agarrei-a forte, decidido, no braço, e fiz sinal para que não falasse, merda, puta que pariu, adrenalina, o velho sai do carro, grita, cospe insultos, puxa o revólver, e aí, seu merda, não vai estirar o dedo agora?, estira, filho da puta!, parei, corpo tremendo, não por fora, por dentro, aquele tremor interior, nervoso, medo, desculpa, cara, a gente estava brincando, Marta se escondendo por trás de mim, me agarrando com força, deita aí no chão, seu filho da puta!, deita!, deita!, deitei apressado, reflexo, ela se encostou na parede, você sabe, filho da puta, que hoje é um dos piores dias da minha vida?, sabe?, chutou-me no abdómen, fala, seu merda, quase sem ar, respirando a custo, disse, sabia não, deu-me mais uma meia dúzia de chutes, forçou Marta a beijá-lo na boca, entrou no carro e foi embora.

Meu Deus, quase morri, esse velho louco quase me dava fim, meu Deus, e Marta ainda nem tinha dado pra mim, não é justo, não, senhor, morrer por morrer, só depois de fazer amor.