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21 março 2012

A Anormal

        “Doutor, não sei o que fazer. A minha Simone, com trinta anos, não fala com ninguém, fecha-se no quarto todo santo dia, mal come, é um recato extremo, exagerado, não tem forma de vê-la sair, namorar... Namorar um moço da sua idade, bom, educado... A sua timidez, coitada, não deixa que assim seja; é uma timidez doentia e perigosa”; falava a Dona Lucimar, preocupação bem definida, o tempo lhe teimando no rosto sedoso, pouco mais de cinquenta anos, contrariados aqui e ali por umas teimosas pregas disfarçadas com pó de arroz, maquiagem exagerada, cabelo vintage, negro diamante, terminava num formoso coque no topo da cabeça, o que lhe dava um semblante artístico e orgulhoso, um pouco sobranceiro. Vestia um blazer cinza de fino recorte, lapela aveludada, e uma saia do mesmo tom à altura do joelho, justa, tão justa que parecia limitar-lhe os movimentos, o que ela disfarçava com sutil elegância. Só a preocupação não encontrava nela disfarce. Muitos anos, muitos anos eram já de resignação e conformidade. Desde pequena, malvadez tamanha, os outros, as crianças do colégio e da rua onde moravam apelidavam a filha de "anormal", zombavam dela, a discriminavam, sempre assim, o tempo todo, e por mais que se tivesse tentado contornar tudo isso, inclusive com punições disciplinares, as coisas só amainavam por breve tempo até voltarem como tsunami.
        Na faculdade, a discriminação atingiu o auge do inimaginável. Fora tão atroz e violenta, que os colegas de curso recusavam a presença dela no mesmo ambiente que o deles. A reitoria e os professores, meio que entre a espada e a parede e paralisados de surpresa com tão unusual comportamento, vieram a decidir-se por um regime de ensino aberto para Simone, estudava em casa e só ia à faculdade em dia de prova. E mesmo nesses dias ela ficava numa sala pequena, isolada, como se portadora de uma terrível doença, a sala de arrumações do extinto bloco 2, para o bem-estar de todos.
        O desprezo era tal que quando da formatura, os alunos e os pais, propuseram à reitoria uma cerimônia distinta da dela, sempre usando argumentos esquivos e infundados. Desfaziam-se em considerações pouco válidas e mal construídas, acusando-a, curiosamente, de uma misantropia inexcedível e vergonhosa, argumento esse suportado pelo seu impenetrável silêncio e olhar fugidio.
        Dona Lucimar, viúva desde há uns trinta anos, o marido morrera Simone tinha apenas dez meses, sempre procurara alhear-se de tais ocorrências. Procurava, por vezes, horas a fio, remexendo e desfiando seus pensamentos, uma desculpa plausível para essa discriminação a que votavam sua filha. No início, Simone era uma menina de escola primária, começou por pensar “ah, coisas de criança, não vale nem a pena me chatear”, mas o tempo passou e tudo continuava igual, mudança nenhuma, parecia até agravar-se, “ah, gente invejosa e mal educada, a minha Simone é rica e bem nascida e tem muita gente que se rói por dentro”. Mas agora... Agora era hora de dar um basta nisso.

        - Doutor, o que devo fazer? Me aconselhe, por favor.
        - Dona Lucimar... Eu talvez não seja a pessoa indicada numa situação como essa. Sou clínico geral, e me parece que o caso seria de se tratar com um psicólogo. Pelo que me falou, parece-me, é claro que não o posso afirmar com certeza, até porque a senhora não trouxe sua filha para que eu a examinasse, mas me parece um problema do foro psicológico. Essa timidez é sintomática. E depois, infelizmente, a nossa sociedade não está preparada para lidar com alguém diferente, antes o pisa e recalca, piorando ainda mais as coisas. Posso dar-lhe o exemplo, guarde segredo, de minha filha. Há uns anos começou a fazer algo bastante peculiar. Todos os dias no banho, em vez do usual sabonete e xampu, usava água sanitária, e de uma marca em particular, White Side. Se outra fosse gritava e esperneava, recusava-se a se lavar. Minha esposa, mãe extremosa, cuidava para que a dita água sanitária não faltasse, ao invés de fincar pé e a contrariar, coisa que muito nos fez discutir. Mas não é aí que quero chegar. O pior foi que um dia à conversa com uma conhecida no supermercado, minha esposa deixou escapar tal hábito constrangedor da menina. - fez uma breve pausa. – Sabe como é, um ouve, conta a outro, esse outro conta a mais uma meia dúzia deles e assim por diante. Lamentável. Imagine como agora chamam a minha filha?
        - Não faço ideia, Doutor. Nem me atreveria.
        - Branca de Neve. Dá para acreditar? E ainda a vivem sacaneando, desculpe o termo, com risadas trocistas enquanto perguntam pelos sete anões. É como lhe digo, Dona Lucimar, a sociedade é discriminatória em absoluto, verdadeiro carrasco de nossas crianças que de uma forma ou de outra são diferentes. No meu caso, no caso de minha filha, nosso erro foi deixar que os outros soubessem. Podia ter sido facilmente evitado, mas um deslize... No caso da sua filha, não devia dizer-lhe isso, mas estou em crer ser mais complicado, até porque não há ou, pelo menos, não sabe a razão desse aparato, nem dessa timidez. É preciso descobrir o porquê de tudo, a motivação... – abriu a gaveta e tirou um cartão. – Tome. Procure o Doutor Orestes. Ele saberá ajudá-la. É um psicólogo experiente. 

        Dona Lucimar cumprimentou-o agradecida e saiu. Sentia-se, naquele momento, tomada por um novo alento, pensava no que lhe contara o Doutor e se alegrava com a ideia de que também a filha dele era diferente. Ainda que nos escusemos admiti-lo, é reconfortante sentir que os outros, este ou aquele, partilham de nossa desgraça, têm conosco alguma afinidade ou semelhança, vivenciam as mesmas coisas, os mesmos problemas. E não devemos envergonhar-nos por isso. Acaso haverá ser humano que com honestidade prefira ver-se distante e diferenciado, único nos seus infortúnios e no desprezo e descaso a que é votado? Pior que há, sim. Simone era disso exemplo. Não mostrava o mínimo interesse em ser aceite. Não fazia nada. Passava os dias vagueando pela casa em camisa de dormir com um sorriso insosso no rosto, aspecto doente, e não raras vezes se debruçava na janela olhando o mundo como se não lhe pertencesse. O seu mundo era tal, tão acanhado e introspectivo que sua mãe não se lembrava de lhe ter ouvido uma palavra.

        - Vamos! Vista uma roupa que vamos sair.

        Meia hora passada pegaram um táxi rumo ao consultório do Doutor Orestes.

        - Boa tarde, Doutor. É o seguinte...

        O Doutor Orestes ouvia-a atentamente, a moça sentada cabisbaixo, o som entrecortado pelas teimosas buzinas dos automóveis e pregões dos vendedores ambulantes, "olha o bolo de fubá", "dindin, sorvete, cremosinho" quando ao cabo de uns dez minutos a interrompeu.

        - Senhora...
        - Dona Lucimar.
        - Obrigado. Entendi já o problema. A moça é fechada... Fechada ao extremo. Isso tem tratamento, sim, mas é dispendioso. Envolve muita terapia, muitas sessões, muitas consultas, coisa para lá de ano. Entende?
        - Sim, sim... O dinheiro não é problema, Doutor. Pago o que for necessário.
        - Eu senti-me no dever de alertá-la. Assim evitam-se mal entendidos. Tenho alguns pacientes com os pagamentos atrasados, alguns pra lá de cinco mil reais e eu aqui estou de mãos e pés atados.
        - Não se preocupe, Doutor Orestes. Vou deixar aqui até um cheque como adiantamento. -tira a carteira de cheques da bolsa, escreve. - Pronto, aqui está. Quando começa?...
        - Segunda. Segunda às dezenove horas. Aqui, nesse mesmo consultório.
        - Dezenove horas, Doutor?
        - Sim, sim. Como a moça tem essa particularidade, é demasiado tímida, convém pô-la a salvo dos olhares e considerações alheias. Por isso, é preferível nesse horário. Entende?
        - Ah, sim, o Doutor é que sabe.
        - E é preferível que venha sozinha. Para que se sinta mais solta, mais à vontade. Não é bom que ela sinta a sua presença, mesmo ficando lá fora na sala de espera. Pode a constranger um pouco.
        - Assim farei, Doutor. Obrigado.

        Na semana que se seguiu começaram as sessões. Três dias na semana, segunda, quarta e sexta, ao escurecer Dona Lucimar chamava um táxi, metia a moça dentro, entre algumas recomendações e mimos, e deixava a indicação do destino com o taxista, bem como a lembrança de i-la pegar no mesmo local uma hora mais tarde.
        No regresso da filha, tentava por todos os meios a sondar, olhava-a inquiridora, espiava, mas nada. A moça jantava e corria para o quarto. Só no dia seguinte voltava a vê-la, sempre por volta do meio dia, pouco antes do almoço. A essa hora sempre a moça descia até ao pátio, pegava uma pedra do chão e a atirava para lá das árvores. Dona Lucimar não entendia. O certo é que Simone logo voltava para dentro com um curioso ar de satisfação. Almoçava, olhos pregados no prato, lenta, sem vontade e corria para cima. Dez minutos na janela do corredor, que a mãe já por várias vezes cronometrara, e se fechava no quarto novamente.
        O quarto, mobiliado com cuidado pela mãe a pedido dela, era invulgarmente iluminado, tinha no teto de gesso mais de uma dezena de luminárias prateadas embutidas, redondas, quase todas sobre a cama. A luz era tão contrastante com a do corredor que parecia entrávamos num portal interplanetário. A cama era de ferro, alta, bem arrumada com um edredom de penas alaranjado, ficava à direita da janela gradeada que dava para o jardim. Do lado esquerdo, uma pequena mesinha de cabeceira do século XVIII por sobre a qual havia uma disposição graciosa de bonecas de porcelana, lindas e aprumadas. No chão assoalhado, à direita, um gira-discos emparedado por duas enormes pilhas de discos ordenados alfabeticamente, de A-Ha a Zélia Duncan.

        - Simone, trouxe o leite.

        Dez horas da noite era fala costumeira, a moça destrancava a porta, a mãe entrava, pedia-lhe que abrisse espaço sobre a mesa de cabeceira e deixava a bandeja com uma xícara de leite, uma colher, dois pães amanteigados e um copo de água.

        "Boa noite", a mãe desejava, e a moça, sem nunca ceder, continuava no seu mundo impenetrável, não falava uma só palavra. Sentada no assoalho observando as capas dos LP´s, deixava a mãe sair e segundos depois fechava a porta com o trinco. Limpava a maçaneta com cuidado e voltava a sentar-se no chão que ela mesma duas vezes por dia encerava.

        A surpresa veio um mês após o início da terapia. Numa dessas noites em que a mãe lhe levou o leite, a moça agradeceu, soltou um breve e quase inaudível "obrigado" e dirigiu-lhe por instantes um olhar terno. Dona Lucimar, surpresa, se aproximou dela, fez-lhe um afago no cabelo, uma lágrima lhe despontando no rosto, e saiu. É quase impossível descrever a alegria que dela se apossara, sua menina falou, sua menina lhe agradeceu. E isso era só o início.
        O tempo foi passando e Simone melhorava a olhos vistos. Começou a cantar no quarto as músicas que rodava no gira-discos, baixinho, sem alarido, cumprimentava a mãe a toda a hora e, por várias vezes, uns meses de terapia depois, tentara entabular conversa ao almoço, mais alegre e segura, olhar menos fugidio e tímido.
        Dona Lucimar, feliz e animada, de grata que era, achou de bom tom agradecer ao clínico geral que lhe indicara o Doutor Orestes. Preparou um bolo Nega Maluca delicioso, bem fofo e cozinhado au point, arrepiou caminho até ao consultório e animosamente lhe contou as boas-novas.

        - Obrigado, Doutor, muito obrigado. Não imagina como me sinto feliz. Ver minha filha assim é uma bênção. Uma única curiosidade apenas... - e riu-se. - De há uns tempos a esta parte, uns meses, todas as noites se lava, imagine só, com água sanitária.
        - Efeitos, Dona Lucimar, efeitos... Como um medicamento para o fígado que prejudica o estômago.

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