Páginas

16 abril 2012

Minha conversa é com Deus


        Tenho um amigo no interior, Tobias Zinezum, vivendo lá pras bandas de Pau dos Ferros, moço humilde, de alma boa, pura e de uma inocência ímpar, tão ímpar que se cobre ao mesmo tempo de dó e graça, alicerçada, talvez, na falta de instrução, nunca frequentou uma escola, e na solidão a que está sujeito desde sempre, que me fez uma visita aqui há dias, aperreado que andava numa procura infrutífera aqui na capital.
        Contou-me muitas e muitas histórias entre um e outro copo de cerveja, coisas de boiuna, mula sem cabeça, saci, imaginem só, muitas dignas de figurarem nos livros de Câmara Cascudo, outras parecia  quase que adaptadas dos livros de Maupassant, de Poe, entre outros gênios literários, sempre me garantindo serem reais e terem acontecido exatamente como me descrevia. Algumas, estou certo, quase na sua maioria, vocês não me acreditariam se aqui as contasse.
        Uma delas, um episódio simples e revelador da vida e personalidade do meu nobre amigo, retive na memória. Não sendo minha tal história, é de Tobias Zinezum, começo até a narrativa usando aspas e, entre aspas, está tudo aquilo que ele me contou.

        “- Bom dia!
        - Bom dia.
        - Eu sou do interior. Estou procurando a casa de um sujeito que atende pelo nome de Deus. Precisava dar uma palavrinha com ele. O senhor sabe onde ele mora?
        - Moço, saber ao certo, eu não sei, não, visse? Eu ouço falar uns bitolados, umas vezes que é lá pros lados de Pirangi, outras, pra lá da Barreira do Inferno... Tem outros que falam que é lá pra João Pessoa... Fico inté confuso. Mas que tem muito cabra procurando o danado, lá isso tem! É de moto, é de carro, de trem, até de jumento eles vêm. E de longe! Chegam aqui com um ar desgraçado por demais. A romaria é grande que só a bexiga! Tão grande que montei inté essa barraquinha e vendo água mineral, cocada, buchada, jujuba, quentinha... Tenho inté cana. Você quer alguma coisa? É pra ganhar forças pra caminhada...
        
        Recusei. Não tinha sede. Não tinha fome. E minha conversa era com Deus. Sabia que não ia ser fácil. O cabra é muito procurado. E diz que só atende com hora marcada.
        Subi na bicicleta, pneu murcho, aro torto que só o diabo, mas era o jeito, melhor que ir em cima dos solados nesse chão quente e agreste, essa terra fervendo excitada.
        Andei por umas duas horas, cansado, sobe, desce ladeira, tanto buraco na estrada, e nada, o mais que via era uns edifícios cinzentos, meio que tristes e doentios, rotulados de igreja. Igreja daqui, igreja dali, universal, pentecostes, assembleia, oh, diacho!, troço mais complicado, a gente só encontra assessor do tal sujeito.
        Entrei numa dessas igrejinhas de bairro, pequena que nem uma capela, e em vendo um homem com uma espécie de túnica, cheguei-me a ele e perguntei:
        
        - Bom dia, senhor. Deus está?
        - Está sim, irmão. Deus está aqui e em toda a parte. Aqui e em nossos corações.
        
        ‘Oxe! Como que pode isso? Eu, hein?!’, pensei.
        
        - Senhor, desculpe, mas acho que está equivocado ou não está entendendo, não sei. Eu procuro Deus. Infelizmente nem sei bem como ele é. Só sei que levou o Rafinha, o filho da minha vizinha Carminha, e queria encontrá-lo. Sabe como é, queria dar uma enquadrada no sujeito. A pobre se acaba de tanto chorar. O menino tem sete anos só, senhor. Muita maldade tirar o pobre assim da mãe. Ah, mas quando eu o encontrar!...
        - Tenha calma, tenha calma, irmão. – aconselhou.
        
        Nem vou contar o resto da conversa porque fiquei meio que enojado. O tal do homem veio com uma conversa sinistra, “Deus é assim”, “Deus chama pra si as criancinhas”, “Deus é bondoso”, “um ser sublime”, “nosso pai”, blá, blá, blá... Parecia advogado do sujeito. Talvez até fosse mesmo. Defendia-o decidido. Fosse ou não fosse, me tirou do sério.
        
        - Homi! Mas você está mangando de mim, é?
        - Tenha calma, tenha calma, irmão. – aconselhou de novo. – Você está com a alma carregada...
        
        Saí. Não tem troço que me aperreie mais que esse negócio de manter a calma. Fico nervoso ainda mais. E aí apelo pra pacificidade interior. Melhor que partir pro tapa, ainda pra mais com um velho feito esse.
        
        - Espere, irmão, espere...
        - Minha conversa é com Deus!
        
        Me enfiei no meio do trânsito, filas enormes, hora de ponta, talvez ele vá em casa na hora do almoço. Pior que ainda nem sabia onde era a moradia do sujeito.
        De repente, parado no sinal numa dessas avenidas movimentadas, senti uma mão nas costas.
        
        - Moço, moço...
        - Oi?...
        - Você tá a fim? – falou o rapaz, devia ter aí uns dezenove anos, moreno do olho arregalado, abriu a mão e me mostrou uma espécie de pedrinha marrom.
        - Deus! Procuro Deus. – falei.
        - Oh, moço, você deu sorte. Deus mora já ali do lado.
        - Sério?!
        - Sério, moço. É meu vizinho esse porra! – e deu uma risada.
        
        Fui com ele. Oh, minha nossa! Para além de não ter visto Deus, levei tanta porrada! Covardia! Três me batendo forte, rindo, falavam qualquer coisa de serem uma tal de trindade. Não entendi nada. E pronto, minha sorte era essa nesse dia, ensanguentado, todo quebrado e sem bicicleta. Tem mal não, eu vou a pé.
        
        Dei voltas e mais voltas em volta da cidade. Zona Este, zona Sul, zona Oeste, zona Norte, praias, rio, mata... Oh, cansaço! Passei horas e horas nessa procura, já tinha os pés que não aguentava... Afe! Desisti.
        
        Quer saber?, Deus não mora em Natal.”





Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Seja bem vindo quem vier por bem."