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01 abril 2012

O Cabeça vai para casa (de Damon Runyon)

        Uma noite o Cabeça está passeando comigo, para cima e para baixo, pela Broadway, falando disso e daquilo, e nós estamos aí pela altura do restaurante do Mindy quando aparece uma ruiva vestida nuns trapos vendendo duas maçãs por cinco centavos. Cabeça, que adora maçãs, pega uma do cesto e dá para ela uma nota de cinco dólares.
        A ruiva, já para lá dos trinta que não é nada em matéria de encantos físicos, olha a nota e diz:
        - Não tenho troco para tudo isso, espere um pouco que eu vou trocar.
        - Pode ficar com o troco - diz o Cabeça, mordendo meia maçã e me pegando pelo braço para continuar o passeio.
        A ruiva olha para o Cabeça com um olhar quase com lágrimas. E diz:
        - Muito obrigada, senhor! Muito obrigada mesmo! Que Deus o abençoe! E sai apressada, pela rua, com as mãos nos olhos e os ombros sacudidos por soluços. O Cabeça fica parado, olhando espantado, até que ela desapareça na esquina.
        - Meu Deus! Veja só isso! - diz o Cabeça. - Ontem eu dei um presente de dez mil dólares para Doris Clare que não fez a metade da cena que esta gata armou por uma nota de cinco.
        - Talvez - digo eu - a ruiva das maçãs precise mais dos cinco que Doris Clare dos dez mil.
        - Talvez! - diz o Cabeça. - E claro que Doris me dá mais que uma maçã e um "Deus abençoe"; Doris me dá seu amor. Eu acho - continua ele - que gasto mais dinheiro com amor que qualquer outra pessoa no mundo.
        - É o que eu também acho! - disse, e penso que temos razão.      

        Calculando por baixo, o Cabeça deve gastar por ano uns 300 mil em amor. E isto é, na verdade, um cálculo modesto, porque, como é do conhecimento de todos, o Cabeça tem três gatas além da sua legítima e amantíssima esposa.
        Na verdade, muitos cidadãos se referem a ele como o Rei do Amor, quando ele não está presente, é claro. O Cabeça gosta de pensar que seus casos são um assunto estritamente confidencial do qual apenas poucos amigos tem conhecimento, mas se existe alguém na cidade que não conheça todos os detalhes tem que ser alguém cego, surdo e mudo.
        Uma vez eu li a história de um cara que se chamava Salomão, Rei Salomão, que viveu há muito tempo atrás e que tinha mil gatas, todas de uma vez (o que eu considero gostar de gatas de uma forma exagerada). Mas se você juntar as despesas que as mil gatas davam a ele eu aposto que não custavam tanto quanto qualquer uma das do Cabeça. Só o custo operacional de uma gata como Doris Clare é para botar qualquer cara doido. E você poderia chamar Doris de frugal em comparação com Cynthia Harris e Bobby Baker.
        Há ainda Charlotte, que é a legítima e amantíssima esposa dele e que, com o vírus do society, precisa sempre de um monte de fichas para acompanhar o jogo. Uma vez, ouvi o Cabeça descrever a esposa para Bobby Baker como se ela fosse mais ou menos uma inválida; na verdade não há nada de errado com ela que um pouco de grana não resolva, embora você possa dizer a mesma coisa de qualquer outra gata no mundo, inválida ou não.
        Se um cara tem o tempo de Broadway que o Cabeça tem é natural que ele acumule gatas, aqui e ali, mas a maioria dos caras acumula uma de cada vez. E quando uma o abandona, como as gatas da Broadway sempre fazem, aí então ele acumula outra, e vai por aí até que o cara chega naquela idade de perder o interesse por elas, o que costuma acontecer quando ele passa dos cento e quatro, embora eu conheça alguns caras que estouraram esse limite.
        Mas quando o Cabeça acumula uma gata, ele a mantém acumulada, e parece que nenhuma delas nunca o abandonou. E isto, que seria uma tremenda aporrinhação para a maioria dos caras, não parece incomodar o Cabeça, ao contrário, lhe dá prazer pensar no incrível poder que tem sobre as mulheres.
        - Não é culpa delas se elas se apaixonam por mim - diz o Cabeça para mim, uma noite. - Eu jamais magoaria uma delas por nada no mundo.
        Bem, é claro que me espanta ouvir um cara, esperto como o Cabeça, dizendo uma coisa dessas; mas eu acho que ele realmente acredita no que diz, porque o cara vive, o tempo todo, com uma ótima impressão dele mesmo. Embora alguns caras digam que a verdadeira razão pela qual o Cabeça não se livra de suas mulheres é que ele é egoísta demais para passá-las para os outros. Eu, pessoalmente, não pegaria nenhuma delas nem se o Cabeça pagasse por isto; com a exceção, talvez, de Bobby Baker.
        De qualquer forma, o Cabeça mantém suas gatas acumuladas e, ainda por cima, gasta uma nota com elas comprando carros, peles e diamantes e mantendo os lugares caríssimos onde elas vivem. Uma vez eu disse que ele economizaria um monte de dinheiro se alugasse uma casa grande e colocasse todas elas juntas, como uma família feliz, ao invés de tê-las espalhadas pela cidade. Mas ele não gostou da ideia:
        - Em primeiro lugar - diz ele -, elas não sabem umas das outras. Embora Doris, Cynthia e Bobby saibam de Charlotte, Charlotte não sabe delas. Cada uma delas pensa que é única para mim. Juntas seria uma ciumeira enorme por minha causa, e, de todo jeito, um arranjo desses seria altamente imoral, além de ilegal. É melhor assim.
        Pense em quantas casas eu tenho para ir, caso me dê vontade de ir para casa. Acho que ninguém tem mais casas que eu em toda a Broadway.
        Bem, isto pode ser verdade, mas, para que e que o Cabeça quer tantas casas é um grande mistério na Broadway. Ainda mais ele, que nunca vai para casa. O que faz o Cabeça não ir para casa é a ideia de que alguma coisa possa acontecer na rua, enquanto isso, e ele não participar do lucro. Aliás, é raro que ele vá a algum lugar.
        Ele nunca sai com nenhuma de suas mulheres a não ser, uma ou duas vezes por ano, com Charlotte; e ultimamente nem isto, desde que Doris Clare reclamou dizendo que ficava mal que os amigos dela o vissem com a esposa.
        O Cabeça se casou com Charlotte muito antes de se transformar no maioral do jogo no Leste e ficar multimilionário, mas ele não é o tipo de cara que vai sossegar em casa e aproveitar a vida com a esposa como tantos maridos costumam fazer. E antes, no tempo que ainda não tinha dinheiro, ele morava longe demais para voltar para casa, assim, acho que no final ele perdeu o hábito.
        Charlotte não passou mais de um ou dois anos olhando os quadros nas paredes. Parece que os quadros nas paredes eram todos de vacas pastando nos vales ou de casas cobertas de neve, por isso ela também não fica muito em casa. Ela tem seus próprios amigos e vive satisfeita e feliz, especialmente depois que o Cabeça se arrumou e pode bancar.
        Uma coisa que posso dizer, do Cabeça e de suas gatas, é que ele nunca pegou um bagulho. O cara tem um bom olho para corpos e caras. Nem mesmo Charlotte, a legítima e amantíssima esposa, é de se jogar fora, embora não seja mais tão jovem quanto já foi. Doris Clare, no tempo dela, foi uma das maiores beldades do Ziegfield; e mesmo que o tempo dela não fosse ontem, nem anteontem, Doris se segura muito bem. Eu diria que Doris tem uns trinta e dois ou trinta e três anos, mas ainda é cheia de atrativos e seu cabelo continua louro apesar do tempo.
        Na verdade, o Cabeça não liga muito se suas gatas são louras ou morenas, porque os cabelos de Cynthia Harris são negros como o interior de um lobo, enquanto Bobby Baker fica na metade do caminho com os seus, de um castanho claro. Cynthia Harris é uma novata em comparação com Doris Clare, tendo saído do "Vanities" de Earl Carrol.
        Segundo ouvi, ela veio para Nova lorque como Miss Alguma-Coisa, num destes concursos de beleza que ela ganharia com um pé nas costas se uma outra Miss Não-Sei-Quem não tivesse piscado um olho para um dos jurados.
        E claro que Cynthia também estava dando suas piscadas, mas parece que o cara, que ela pensava ser um jurado, era só um jornalista sem nenhum poder de decisão no concurso.
        Bem, Earl Carrol fica com pena de Cynthia e assim leva-a para o "Vanities", onde ela pode mostrar-se sem roupas. Logo, o Cabeça a vê e, num instante, ela está rodando num carro importado maior que um barco de contrabandista de rum.
        Pessoalmente, considero Bobby Batter como a mais inteligente das gatas do Cabeça. Ela é a menos chamativa das três e nunca teve as vantagens na vida de um trabalho no palco, como Doris e Cynthia, onde pudesse aparecer despida para caras assim como o Cabeça. Bobby Baker começou praticamente do nada, trabalhando como secretária de um cara de Wall Street, onde ela andava sempre vestida, ou pelo menos tão vestida quanto as gatas andam hoje em dia.
        Parece que o Cabeça tem algum negócio para resolver com o cara em Wall Street e então fica conversando com Bobby, e ela conta para ele de como sempre desejou conhecê-lo com tudo que ouve e lê nos jornais sobre ele e de como o Cabeça é bonito e tem um ar romântico, exatamente como ela imaginara.
        Sendo um cavalheiro, eu nunca chamaria uma gata de mentirosa, e talvez Bobby Baker realmente ache o Cabeça um cara bonito e com um ar romântico, mas pessoalmente creio que se ela não estava exagerando devia estar muito excitada e um pouco fora da realidade quando fez tal afirmação. O melhor que se pode dizer do Cabeça, hoje em dia, é que ele se veste bem.
        Ele anda pelos quarenta e começa a acumular peso na cintura, o que é de se esperar de alguém que passa todo o tempo sentado jogando cartas e nunca faz nenhum exercício, a não ser passear com caras como eu pela Broadway em frente ao restaurante do Mindy. Tem um rosto pálido sempre barbeado e dentes muito brancos, que lhe dão um belo sorriso que ele nunca usa com quem lhe deve dinheiro.
        Direi ainda, a favor do Cabeça, que ele tem o que se chama de personalidade. É capaz de contar uma história com graça (embora seja sempre ele o herói de todas as histórias que conta) e, além disso, conhece várias outras maneiras de agradar uma gata. Ele tem uma razoável cultura e, se Cynthia, Doris e provavelmente Charlotte preferem uma conta aberta na "Cartier" a toda a cultura que possa haver em Yale e Harvard, parece que Bobby Baker gosta da conversa inteligente que o Cabeça gasta com ela.
        Bem, logo Bobby está andando num carro ainda maior que o de Cynthia, embora nem um nem outro seja tão grande quanto o de Doris, e as garotas, filhas dos vizinhos em Flatbush, que é onde Bobby se esconde, estão mortas de inveja e espalhando boatos maledicentes a respeito dela, mas, é claro, com um olho grande e a fim de um carrão também. Da minha parte, acho que o Cabeça se rebaixa um pouco, socialmente, se misturando com uma gata de Flatbush; em especial com alguém como Bobby, que tem uma inclinação por caras intelectuais, como jornalistas, escritores e outros tipos do gênero, que circulam por Greenwich Village.
        Mas não há como negar que Bobby Baker é esperta e, nos quatro ou cinco anos que ela tem sido uma das gatas do Cabeça, ela conseguiu tirar mais dinheiro dele que todas as outras juntas. Isto porque ela está sempre dizendo quanto o ama e como não pode viver sem ele, enquanto Doris Clare e Cynthia Harris às vezes esquecem de repetir isto mais que uma ou duas vezes por mês.
        Agora, o que aconteceu naquele dia foi que um cara, um tal de Daafy Jack, vai e de repente enfia uma faca no lado esquerdo do peito do Cabeça. Parece que a encomenda é da parte de um tal Homer Swing, que deve muita grana de jogo ao Cabeça e anda indignado com a pressão que vem recebendo para pagar. Daafy Jack, que é um hábil e conceituado artista com uma faca na mão, aparentemente busca o coração, mas erra por alguns centímetros e deixa o Cabeça sangrando muito, com um corte feio na lateral, que necessita ser costurado.
        Big Nig, o jogador de dados, e eu estamos parados na esquina da Rua Cinquenta e Dois com a Sétima Avenida, aí por volta das duas da manhã, jogando conversa fora, quando o Cabeça aparece, cambaleando, vindo da Cinquenta e Dois, e cai nos braços de Big Nig, sujando de sangue um sobretudo novo pelo qual o negão pagou sessenta e cinco dólares há poucos dias. Naturalmente Big Nig se queima com isto, mas nós percebemos que não é momento para reclamar por causa de um sobretudo. Dá para ver que o cara está bem machucado e com um péssimo aspecto.
        É claro que não ficamos muito surpresos em ver o Cabeça naquelas condições, porque há anos que ele não é muito querido na área e uns e outros estão ansiosos para fazer isto ou aquilo com ele. Mas não imaginávamos vê-lo fatiado como um peru de Natal. O que se esperava que ele fosse baleado; e tanto eu quanto Big Nig ficamos chocados com a ideia de que existem caras capazes de usar um instrumento primitivo como uma faca para fazer este tipo de serviço.
        Mas, enquanto estamos fazendo estas considerações, o Cabeça diz para mim:
        - Chame Hymie Weissberger e o Doutor Frisch - diz ele - e me leve para casa. 

        Naturalmente, um cara como o Cabeça pensa primeiro em seu advogado e só depois no seu médico, e Hymie Weissberger é o homem de confiança do Cabeça e pessoa da maior competência.
        - Bem - digo eu -, acho melhor levar você para um hospital onde possam tratar dessa ferida, logo.
        - Não - diz o Cabeça -, é melhor manter isto em segredo. Não é bom que a notícia se espalhe, e se eu for para um hospital eles vão ter que fazer um relatório para a polícia. Leve-me para casa.
        Naturalmente fico confuso, com as várias casas do Cabeça, e pergunto qual delas. Ele pensa por um minuto, ponderando bem a questão:
        - Park Avenue -, diz ele finalmente. Big Nig pára um táxi, nós ajudamos o Cabeça a embarcar, e eu digo ao piloto para nos levar para o edifício em Park Avenue, perto da rua Sessenta e Quatro, onde vive Charlotte, a legítima e amantíssima esposa do Cabeça.
        Quando chegamos lá, decido que é melhor que eu suba primeiro e prepare o espírito da pobre Charlotte; porque posso prever o choque de uma esposa amantíssima abrindo a porta, no meio da madrugada para um marido todo retalhado.
        Primeiro o porteiro e o ascensorista tentam me impedir de subir até o apartamento com uma história confusa sobre alguma coisa que está acontecendo lá, e só depois que explico que o cabeça está doente é que me deixam passar. Um mordomo gordo me atende à porta, de onde eu vejo que o apartamento está cheio de caras e gatas, todos vestidos para a noite, e que alguém está cantando.
        O mordomo tenta dizer que Charlotte não pode me receber, mas eu termino por convencê-lo de que é melhor ir chamá-la e no final ela vem até a porta, uma festa para os olhos, toda coberta de jóias. Eu enrolo um pouco para não alarmá-la muito e acabo contando que o Cabeça sofreu um acidente, que está lá embaixo num táxi e pergunto a ela onde é que nós vamos colocá-lo.
        - Mas - diz ela - num hospital, é claro. Eu tenho visitas importantes esta noite e não vou estragar a festa trazendo para casa alguém que já deveria estar internado.
        Leve-o para um hospital e diga a ele que amanhã irei vê-lo levando uma canja.
        Eu começo a explicar que o Cabeça não precisa de uma canja, que o que ele necessita, urgente, é de uma cama onde possa deitar, mas ela fica irritada e bate a porta na minha cara depois de dizer:
        - Leve-o para um hospital, como estou dizendo. O que você quer fazer é ridículo; isto não é hora dele voltar para casa, em mais de vinte anos ele nunca chegou tão cedo.
        Aí, enquanto estou esperando o elevador, ela abre a porta de novo e pergunta:
        - Ele está muito ferido?
        Eu digo a ela que não temos ideia da gravidade da ferida e ela fecha a porta outra vez, e eu volto para o táxi pensando na raça de gata desalmada que ela é; embora eu entenda que seria bastante inconveniente para ela acabar com uma festa desta forma.
        O Cabeça está encostado num canto do assento do carro, com os olhos meio fechados e parece que Big Nig conseguiu estancar um pouco o sangue com um lenço, mas mesmo assim o Cabeça me parece sem forças. Quando entro no carro ele dá uma despertada, e quando eu conto para ele que Charlotte não está em casa o Cabeça dá um sorriso e sussurra:
        - Vamos para a casa da Doris.
        Bem, Doris vive num condomínio do Lado Oeste, na altura da Setenta e Dois com Riverside; eu digo ao piloto para tocar para lá, enquanto o Cabeça volta ao estado de semi-inconsciência. Aí, Big Nig se inclina para mim e diz em voz baixa:
        - Não adianta ir lá - diz o negão. - Eu vi a Doris, num casaco de pele, saindo esta noite com aquele cara, Jack Waalen, o ator; eles estão tendo um caso e é um escândalo a forma como ela se comporta. Vamos levá-lo para a Cynthia - continua Big Nig -, ela tem bom coração e vai ficar feliz em poder ajudar.
        Cynthia vive numa suíte, de quinze mil dólares por ano, num hotel quase na esquina da Quinta Avenida. Cynthia é uma gata que gosta de viver perto do movimento porque, quando ouve que alguma coisa acontece, ela pode chegar lá na mesma hora. Quando chegamos ao hotel eu a chamei da portaria e disse que tinha algo de muito importante para dizer-lhe e ela me disse que subisse.
        Deviam ser umas três e quinze, e eu estava um pouco surpreso de encontrá-la em casa. Mas lá estava ela me recebendo com um enorme sorriso, linda, vestida num negligé e com seus cabelos soltos, me mostrando que o Cabeça sabia, como ninguém, escolher suas gatas. Mas, logo que expliquei a razão da minha presença, sua linda boquinha perdeu o sorriso e endureceu para me dizer:
        - Escute - disse ela -, eu já tenho problemas demais com a gerência desta espelunca. Ontem mesmo, foram dois caras brigando por minha causa, numa festinha que dei aqui e o segurança do hotel teve que vir para separá-los. Eu não posso me envolver em outra confusão. Você já imaginou o que é que os jornais vão publicar, se souberem que o Cabeça está aqui? Pense na minha reputação!
        Bem, em poucos minutos, eu percebo que não vai adiantar nada ficar argumentando com ela; porque ela fala muito mais rápido que eu e continua insistindo sempre na mesma tecla, do golpe que vai ser para sua reputação receber o Cabeça. Então eu vou embora e a deixo ali, belíssima no seu negligé.
        Agora, o que nos resta a fazer é levar o Cabeça para Bobby Baker, que vive num duplex em Sutton Place no East River, onde os ricos construíram seus enormes prédios de apartamentos como uma ilha, no coração do antigo bairro. Enquanto estamos indo para lá, com o Cabeça deitado no banco e respirando mal, eu digo para Big Nig:
        - Nig - digo -, quando chegarmos na casa de Bobby, nós levamos o Cabeça para dentro sem perguntar nada a ela e colocamos ele numa cama antes que ela tenha tempo de se recusar a recebê-lo; embora Bobby Baker seja uma gata legal, que com certeza fará tudo para ajudá-lo, principalmente - eu continuo - levando em consideração que o cara paga os cinqüenta mil dólares de aluguel pelo apartamento dela. Mas é sempre bom prevenir.
        Assim, quando o táxi pára na frente do prédio de Bobby, Nig e eu o arrastamos, cambaleando entre nós dois, até a porta do apartamento onde toco a campainha. Bobby vem, ela mesma, abrir e, pela porta, eu vejo as pernas de um cara desaparecerem no fundo do apartamento. Não que exista nada de errado com isso, mas as pernas do cara vestiam um pijama cor-de-rosa.
        Claro que Bobby fica muito surpresa em ver o Cabeça balançando entre Nig e eu, mas ela não convida ninguém para entrar enquanto eu explico a situação e começo a contar para ela que o Cabeça foi esfaqueado e que suas últimas palavras foram para levá-lo para sua querida Bobby. Mas ela interrompe a história triste que estou lhe contando:
        - Se vocês não o levarem daqui, agora mesmo - diz ela -, eu chamo a polícia e vocês vão ser presos como suspeitos.
        Então ela bate com a porta na nossa cara e nós temos que arrastar o Cabeça de volta para a rua, e, de repente, realizamos que Bobby está certa e que se a polícia nos encontra carregando o cara, todo cortado, ou se o cara morre conosco, vai ser muito difícil explicar. Principalmente, levando em conta a tendência natural que a polícia tem para suspeitar de caras como eu e Nig.
        Na rua descobrimos que o taxista deve ter pensado a mesma coisa, depois que saímos do carro, porque o cara desapareceu. E nós estamos ali, no East River, com o dia amanhecendo, sem ver nenhum táxi pelas ruas e na iminência de encontrar um policial a qualquer instante.
        Bem, não há nada a fazer a não ser carregar o Cabeça conosco e tentar sair dali. Nós andamos vários quarteirões e, afinal, estamos no meio das velhas casas do bairro quando ouvimos alguém abrindo uma porta e de repente, de um subsolo, aparece a gata.
        Ela nos vê antes de termos tempo de sair da luz e nos escondermos. É uma gata bastante decidida e vem até onde estamos olhando para mim e Big Nig e depois para o Cabeça, que perdeu o chapéu pelo caminho e tem o rosto pálido bem visível, mesmo na luz fraca do poste.
        - Meu Deus! - diz a gata. - É aquele senhor gentil que me deu cinco dólares por uma maçã. O dinheiro para os remédios que salvaram a vida do meu Joey. O que é que há com ele?
        - Bem - digo para a gata, ruiva e mal vestida como sempre -, não há muita coisa, a não ser que precisamos deitá-lo em algum lugar senão ele morre.
         - Traga-o para dentro - diz a gata, apontando para a porta de onde saiu -, minha casa não é grande coisa, mas ele pode descansar enquanto vocês vão procurar ajuda.
        Eu só ia até a farmácia comprar uns remédios para meu Joey, que, graças a este senhor, já está fora de perigo.
        Então nós carregamos o Cabeça e descemos os degraus para o apartamento com a ruiva nos mostrando o caminho até um quarto com um cheiro de lavanderia chinesa e cheio de crianças dormindo no chão. Só há uma cama no quarto, não é grande, e nela já está deitado um menino, mas a ruiva põe o garoto num canto da cama e acena para que nós deitemos o Cabeça ao lado dele. Então, com um pano molhado, ela começa a lavar o ferimento.
        O Cabeça, afinal, abre os olhos e vê a ruiva que sorri para ele. Pensando bem, eu acho que ele esteve consciente da maior parte das coisas que aconteceram durante a noite, enquanto o carregamos de um lado para outro, e que só não disse nada por estar muito fraco. De todo jeito, ele vira para Big Nig e diz:
        - Traga Weissberger e Frisch o mais rápido que puder. Mais que tudo traga Weissberger. Não sei se é grave este corte, mas há umas coisas que preciso dizer a ele.
        Bem, o caso era grave, como sabemos, e o Cabeça não se recuperou. Mas ele ficou ali, naquele porão até morrer, três dias depois, com a ruiva cuidando dos dois, dele e do garoto dela, deitados na mesma cama. O Dr. Frisch achou melhor não movê-lo porque isso só faria apressar sua morte. Na verdade, Frisch ficou espantado que ele não tivesse morrido antes, depois do passeio que demos com ele de uma casa para outra.
        Eu fui ao funeral do Cabeça, como todo mundo na Broadway, e posso dizer que nunca vi tantas flores em toda minha vida. Flores cobrindo todo o caixão e flores por todo o chão, até a altura do joelho. Aquelas coroas devem ter custado uma fortuna com o preço que andam as flores nos dias de hoje. Na verdade, foi o tamanho e o preço de todos aqueles arranjos e coroas de flores que me chamaram a atenção para um pequeno apanhado de cravos vermelhos, não muito maior que minha mão e bem ao lado de um travesseiro de violetas, grande como um cobertor de cavalo.
        Junto com os cravos há um pequeno cartão que diz: "Para um cavalheiro gentil." Mostro para Big Nig e comento que, no meio de todo aquele dinheiro em flores, os cravos são provavelmente a única homenagem sincera. O negão diz que provavelmente eu tenho razão, mas que nem mesmo sinceridade vai servir de grande ajuda ao Cabeça, lá para onde ele vai.
        Qualquer pessoa pode confirmar que Charlotte, a amantíssima esposa do Cabeça, é uma competente carpideira, mas o choro dela não chega aos pés do espetáculo armado por Doris Clare, Cynthia Harris e Bobby Baker. Bobby chorou tão alto que chegaram a pensar em expulsá-la do funeral.
        Mas, eu soube mais tarde, que toda a dor que elas mostraram no funeral foi nada em comparação com o pranto derramado quando descobriram que o Cabeça fizera Hymie Weissberger redigir um novo testamento e deixara todo seu dinheiro para uma ruiva chamada O'Halloran, viúva de um pedreiro e com cinco filhos.
        Bem, no princípio, todo mundo na Broadway acha que foi um gesto maravilhoso do Cabeça e que é bem feito para sua amantíssima esposa assim como para Doris e Cynthia e Bobby. Da maneira que falam dá para acreditar que vão levantar um monumento para o Cabeça pela sua generosidade com a pobre ruiva.
        Mas, duas semanas depois de sua morte, as mesmas pessoas já estão dizendo que, com certeza, a pobre ruiva era uma das antigas gatas do Cabeça, que as crianças devem ser todas dele, e que sua consciência o incomodou na hora da morte. É assim que são as pessoas na Broadway. Mas eu sei que elas estão erradas, porque se há uma coisa que o Cabeça nunca teve foi uma consciência. 





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