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10 novembro 2014

O artista

A força, é o que me falta. Meu viver é precário, fosco, sem honestidade. A alegria, forçada. O sorriso, meia boca. Meu viver nunca será completo. Vivo com medo. Vivo para esse último dia que não quero, e que sei de nada me prestará, a não ser no culminar dessa agonia. Mas e se assim não fosse, como viver viveria? A que se prestam os cinzas outonais, as folhas caídas, senão a essa prostituta melancolia, dada de todo, agindo com perfídia? De que se valem as primaveras senão de coloridas rimas e cópulas desmedidas, frugazes, e vadias, sem Deus, sem prumo, sem norte? De que se valem as coisas senão da finitude relativa? O fim, desprezível saltimbanco, dado a mesmices, segue o trilho. Ouço o apito! "Senhores passageiros, a embarcação com destino a tikmanononpólis parte dentro de momentos." 
Procurei em todo lugar: Tikmanononpólis não existe. No entanto, vou para lá. Não é a primeira vez que vivo o inexistente. Eu vivo-me o mais que posso sem, no entanto, ter existido. Ou será o contrário? Minha existência é farta para o tão pouco que vivo?


"Não está mau. Mas devia ter terminado num gemido", e riu. "Meu pai também escrevia... Umas bobagens... Era um quase-poeta, do mesmo jeito que você."

Na minha frente, uma moça de aparência delicada, esguia, braço fino, risonha, de uma expressão doentia. Estava indo tão bem! Ela podia ter sido minha namorada, depois noiva, esposa, mas tem gente que não sabe quando calar a boca, fica entre o poema e a quase-poesia, é quase-poeta... Quase-poeta, seria um elogio?, uma brincadeirinha qualquer não muito propícia para um cara meio-seriedade que nem eu, lambedor de ferida, filho da puta psico-dramático convicto?

"Minha quase-poesia é minha pica...", falo no ouvido dela, o sorriso desaparece... Que indelicado, hein!, que grosseiro, hein!, é essa sua educação, Pedro Paulo Pereira Pinheiro?, hein? Que desagradável!, que baixeza!, que tacanhez!

Para, tá? Minha quase-poesia um caralho! Uma quase-mulher, vadia de quinta categoria, chega, esculhamba minha criatividade... Sim, quase-poesia, quase-poeta é esculhambação, e eu vou ficar quieto?, vou ficar quieto?

A quase-mulher retirou-se. Segundos depois surgiu na minha frente emparedada por meia dúzia de seguranças. Tentei argumentar. Os caras eram duros de ouvidos. Ninguém entende um poeta. O poeta tem senso que as humanas gentes desconhecem. Sensações, dores... Alegrias e tristezas... Por cada tentativa de argumentação de minha parte, soltavam o verbo físico, pujante. O substantivo era convincente.

"Darei a outra face, sim, meus irmãos. Para que aprendais com o justo o que é justo, com o humilde a humildade, com o filho de Deus o sacrifício, o amor no que tem amor, a pureza no puro de espírito. E ainda que não me compreendais... Por favor, por favor, não empurrem. Ainda que não me compreendais, sabei, não estais sozinhos. Também essa rapariga não me compreende!"

Hora da fuga, veloz, certeira, atalho bem vindo, o peito arfa, a pulsação subindo, "rapariga! Quase-poeta... Que vadia! E esses bolinha de força, pitbull de meia tigela tirando onda de protetor de vagabunda. Filhos da puta!"

Dobro a esquina da 6. Estou seguro. Rio. Eu quase fui atleta. É! Quase atleta.

"Senti uma pontinha de orgulho aí."

"Oi, Jeff. Ah, cara, era uns 100 metros em 12 segundos. Sem treino, sem preparação..."

"Você também faz uns dois ou três poemas por dia, quatro ou cinco estrofes cada um, rima toante, consoante, métrica certinha, sílaba poética ajeitadinha..."

"Ah, cara, para de falar com diminutivo. Certinha, ajeitadinha... Daqui a pouco tá dizendo poeminha, poetinha, versinho, riminha...

Jeff calou. Jeff é um cara sensato. Poetinha! Que coisa mais ridícula! Tem coisa mais ridícula que diminutivo? Fala sério. Tem coisa mais brega que chamar pão de pãozinho, amor de amorzinho, querido de queridinho, passo de passinho, música de musiquinha, filme de filminho, poema de poeminha? Tem?

Um senhor de meia-idade atravessa  o sinal, caminha na nossa direção...

"Boa noite. Desculpe, eu não sou o diabo. O Diabo morreu no primeiro de março no hospital de São Cristóvão, eram umas três pra quatro horas. Teve um infarto. Mas isso não vem para o caso. Eu sei que você é um cara sofrido. Ninguém leva você a sério. Escreve uns poemas babacas, uns pensamentos reciclados... Eu tenho como fazer de você um Neruda, um Drummond, um Pessoa..."

"Senhor, senhor... Desculpe, está frio, não durmo faz uns três dias, a hora é imprópria... Eu vou anotar aqui seu número, tá certo?, amanhã ou depois ligo com o senhor. Certo?"

Não quero mais encrenca, não. Pobre diabo, maltrapilho, carregando latinha, meio velho, quase-humano, querendo me fazer crer que é poeta. Pior, dos bons! Ao nível de Drummond! Quanta fantasia!

Fiz que anotava o número. Pedi um cigarro. Despedi-me educadamente e fui embora. Era quase dia.

"Que noitinha!...", comentou Jeff.

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