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14 dezembro 2015

Resenha de "O Processo", de Franz Kafka



Não se pode falar de “O processo” sem se falar, primeiramente, de seu autor – Franz Kafka. Kafka, escritor Tcheco, formado em direito, funcionário num instituto de seguros, judeu, considerado um dos mais influentes escritores do século XX, era, todavia, aquele que não queria ser lido. E seu testamento deixou explícito que tudo o que escrevera deveria ser queimado, nunca dado à estampa, como se achasse que não merecia que o lessem. Felizmente, o amigo herdeiro, Max Brod, contrariou o pedido; não foi capaz de jogar na fogueira “O processo” e outros manuscritos, compilou-os e publicou. 
Kafka era um indivíduo inseguro, pessimista, senhor de um humor seco e de uma fina ironia. “O Processo” comprova-o. Nele espelha sua visão de mundo, sua imagem de uma sociedade arbitrariamente dominada por uma justiça inescrupulosa, que age sem explicação e sem argumentos, exercendo o poder pelo poder.
Joseph K., seu alter-ego, é um funcionário de um banco acusado e feito prisioneiro num processo sem rosto, num processo cuja acusação desconhece e cuja prisão não entende e nem lhe é dado conhecer o motivo. Essa é a story line de “O processo”. Simples, direta, certeira e surreal. Mas o que há de espantoso nessa story line e na criação kafkiana é que o surreal não é tão surreal assim, o surreal tem contornos reais e, arrisco dizer, acontece. A prisão Kafkiana de K. não é inverossímil. Devia ser, mas não é. São inúmeros os casos de prisões indevidas, de violação das liberdades individuais, de não justificação de cárcere, na época de Kafka e mesmo em tempos mais atuais. Aqui mesmo, no Rio Grande do Norte, num documento de 1870 (poucos anos antes do tempo de Kafka, que nasceu em 1883), o partido liberal norte-rio-grandense dava conta: 

“O bacharel Joaquim Theodoro [...] de Albuquerque precisa que V. Ex, pessoa respeitável despache, mande que o comandante da fortaleza da barra lhe declare ao pé desta qual o motivo por que se acha preso na mesma fortaleza o pratico da barra Ignácio Firmo da Trindade, e bem assim a ordem de que autoridade foi determinada tal prisão.” (MACEDO et al, 1870, p. 10). 

Ora, as semelhanças com o infortúnio de Joseph K. são evidentes.
Por isso, “O processo”, de Kafka, não é apenas uma obra de ficção, é um documento histórico, pois, por meio dele, é-nos dado a conhecer o funcionamento da Justiça de finais do século XIX, início do século XX. E é um documento histórico tanto mais relevante quanto se enquadra naquilo que Hobsbawn afirma no prefácio de “A era dos extremos”: “As pessoas que nos esclarecem de fato são as que podem – ou querem – falar livremente, de preferência quando não têm responsabilidade por grandes questões” (HOBSBAWN, 2001, p. 8) e quanto se pode afirmar que não se trata de um produto historiográfico. Aquilo que é produzido com determinada finalidade resulta, não raras vezes, deformado por culpa das intenções do autor.
Kafka escreve num momento histórico de desconfiança (Pré-Guerra e pós-guerra), num contexto em que o otimismo do século XIX começa a se esvair, em que as pessoas percebem que o sentido da História não é assim tão linear, com vista ao sucesso e ao progresso, quanto se preconizou. Surgem dúvidas sobre o rumo que a História toma.
Na mesma época, o Brasil vê surgir obras como “Os Bruzundangas”, de Lima Barreto, da mesma forma vestido de uma ironia e de um pessimismo atrozes. Se Kafka ridiculariza e põe a nu a estrutura da Justiça no contexto europeu, Lima Barreto vai mais longe, sugere, por meio da sua metáfora, a reinvenção do país, pois aqui, como nos tribunais de Kafka, está tudo errado, é tudo risível, cotidianamente vivido e consentido, e pior, real. Aqui, como na Europa, é atribuído um valor imensurável ao doutor. O doutor advogado de Kafka, que se recusa a receber os clientes, que os humilha, que os deixa na agonia de alguma informação, que não pode ser dispensado, é o mesmo doutor que vive na Bruzundanga (o Brasil), que compõe o que Lima Barreto apelida de aristocracia doutoral e que

“lá, [...] se arma de um título [...], obtém privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de cousas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores” (BARRETO, 2005, p. 33).

Ou seja, “O processo” tem em sua trama um caráter universal. Talvez por isso o seu sucesso enquanto livro – as pessoas reconhecem-se em K., as pessoas reconhecem a Justiça que ali é descrita, e sentem-se, com razão, injustiçadas.
Kafka coloca-nos, além disso, diante de uma Justiça que atropela um dos princípios nobres da própria justiça, ao menos no nosso tempo: a presunção de inocência. Na Constituição Brasileira, o artigo 5º, LVII, diz que “ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Esse princípio, que nasce com a Magna Carta Libertatum, de 1215, de João-Sem-Terra, e que se consolida com a Revolução Francesa, somente se vê consolidado na Europa depois de 1948, ano em que a ONU o insere na Declaração dos Direitos Humanos. Fica a sensação de que Kafka propugnava a inserção do mesmo princípio, ou algo equivalente, na Constituição alemã de Weimar, de 1919, o que não se verificou. A referida constituição, no artigo 19, da restrição dos direitos fundamentais – via judicial, alínea 4, apenas admitia que “toda a pessoa, cujos direitos forem violados pelo poder público, poderá recorrer à via judicial” (CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO ALEMÃO, 1919), além de, na alínea 1, afirmar que um direito fundamental possa ser “restringido por lei ou em virtude de lei” (CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO ALEMÃO), embora não limitado a um caso particular.
Além disso, “O Processo” inverte o sentido normal da justiça ao exigir de K. que comprove sua inocência. Na realidade, “o acusado não tem o dever de provar a sua inocência, cabe ao acusador comprovar a sua culpa, sendo considerado inocente, até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória”.
A justiça, sendo o ponto central da obra, é amplamente explorada nas suas características. Prende K. “[...] embora ele não tivesse feito qualquer mal (KAFKA, 2000, p. 4) e não se sente sequer na obrigação de lhe dar explicações, de tal forma que o protagonista, que vive num Estado que assenta no Direito, julga, a princípio, tudo tratar-se de uma comédia, de uma brincadeira dos colegas de trabalho. Essa justiça não andava atrás das culpas das pessoas, mas era forçada pelos delitos a enviar os guardas e, nela, os superiores atendiam os acusados quando a isso estivessem dispostos, antes não. Exigia amabilidade e compreensão pelos seus procedimentos e, todavia, mostrava um elevado grau de incompreensão pelos outros. É arbitrária, age quando e como bem lhe apetece. Está acima de tudo.
K., a início surpreendido com os procedimentos dessa justiça, é, no entanto, um homem que não liga a surpresas. É acusado, mas isso quase não o surpreende, e parece mesmo que a dado ponto da trama se resigna, quase como se, de fato, sentisse que era culpado, talvez porque interiorizara a culpa. Absurdo, mas a isso o impelem. À força da acusação, sente-se culpado.
Ao mesmo tempo, deve atentar-se noutra particularidade da justiça kafkiana: a prisão. K., preso, continua, todavia, a poder viver como até ali, podendo, inclusive, ir trabalhar; o que sugere que a prisão kafkiana é metafórica. Não é uma prisão de verdade, é uma prisão, eu diria, social. As coisas, sendo do jeito que são, asfixiam-no, limitam-no, aprisionam-no. Preso de maneira muito diferente da que usam para prender ladrões, sua prisão é, nas palavras da Sra. Grubach, qualquer coisa de sábio.
Interessante na obra são alguns detalhes como a marcação da audiência em lugares inusitados, em horários pouco habituais (aos domingos), a platéia nas audiências, a localização das repartições da justiça, o acompanhamento da cena no primeiro capítulo por dois velhotes, que olham da janela do outro lado da rua... Tais fatores indicam que a justiça é onipresente. Aliás, melhor dizendo, creio que a intenção do autor fosse dizer-nos que o “julgamento” é sempre presente, que onde quer que estejamos, na hora que for, somos sempre alvos de julgamento por parte dos outros.
Kafka é, afinal, em “O Processo”, notoriamente, liberal. A prová-lo está a perspectiva de K. em toda a trama, chegando a enfurecer-se com a Sra. Grubach por esta ser pouco lisonjeira para com a menina Burstner. Decência!, grita, “se quiser manter a sua pensão decente, tem de me mandar embora” (KAFKA, 2000, p. 19).
A terminar, destaco as duas particularidades que, creio, fazem de “O Processo” um enorme sucesso: a universalidade e a atualidade. O tema do livro, a Justiça aviltante e sobranceira, é tão universal quanto atual, bem como o julgamento alheio destacado acima.



Referências Bibliográficas

BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. Rio - São Paulo - Fortaleza: ABC Editora, 2005.
Constituição de Weimar. Disponível em:< https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso em: 24 de agosto de 2015.
HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). 2.ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
KAFKA, Franz. O Processo. Trad. Gervásio Álvaro. Linda-a-Velha: Abril/Controljornal, 2000.
MACEDO, Antonio Soares de; MONTEIRO, Francisco Alvares (et al). Assalto às urnas. Notícias sobre a eleição senatorial do Rio Grande do Norte. Natal: Typographia do Rio-Grandense, 1870.
Prinicípio da presunção de inocência. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/162/o-principio-da-presuncao-de-inocencia-e-sua-repercussao-infraconstitucional#ixzz3jmlMKyGV>. Acesso em: 24 de agosto de 2015.

Um comentário:

  1. Gostei de ler. Não conhecia e estes pensamentos levam-nos mais além.A vida constrói-se em cada dia.

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