Nunca refleti o bastante
sobre a solidão. Os momentos em que estive sozinho, aproveitei-os, via de
regra, para debruçar-me sobre outros temas: a vida, Deus, a morte, o amor... E
foram inúmeros. Eu sou, diria, um solitário nato. E na mais completa solidão,
na contemplação do silêncio e paz dos azuis celestes e dos verdes naturais,
encontrei sempre o mais puro gozo e satisfação. Nasci com a urgência do pensar,
com a vontade de comunhão com as coisas, ao mesmo tempo com a força de um
alheamento sem fim. Fui sempre um espectador, um sujeito que preferiu
substancialmente a observação à ação, o assistir ao atuar, o olhar, ver,
escutar ao reproduzir. Se a vida é um palco, eu agachei-me a um canto, num
ponto cego, no escuro, onde ninguém me pudesse ver, intuindo tudo, adivinhando
falas, imaginando caminhos, cogitando fins. A solidão nunca me atrapalhou;
nunca foi um mal que pesava sobre mim. Pelo contrário, a solidão, ao menos
momentânea, era uma espécie de ambição. “Deixem-me só, meu Deus! Eu preciso.
Chega de som nos meus ouvidos, de barulho, gritaria...”, cotidianamente pedia.
E, cotidianamente, minha esposa, divina, me deixava por uma ou duas horas
estático, a tv ligada, o pensamento voando tão longe e distante que eu não
pensava em nada. Às vezes, ela questionava: “estás a pensar em quê?”. Minha resposta
quase invariável era: “em nada”. E eu pensava, de fato, em nada. E não sabia
como explicar-lhe. Como se pensa em nada? Não sei. Era como se tudo, se todos
os pensamentos me escapassem, como se me encontrasse num vazio sem fim,
reconfortante, gostoso, longe de incômodos, desafios, problemas ou afins. Nesse
vazio, nesse “poço cognitivo”, era feliz.
Minha vida, entretanto,
mudou. Esses “poços cognitivos” são agora mais frequentes, mais rotineiros, mas
minha felicidade em nada se agigantou. Sou tão-somente mais solitário ainda e
percebo agora que existem diferentes tipos de solidão: a solidão voluntária, a
solidão involuntária e a solidão semi-voluntária. Na solidão voluntária, você
está sozinho porque quer. Você prefere isso, e disso sente até, por vezes, uma
premente necessidade. Eu era assim. Lembro-me que quando era criança – com
três, quatro anos –amava estar sozinho no quintal ou embaixo da mesa de meu
avô. Enquanto ele costurava fraques, eu alinhavava minhas infantis filosofias.
Você não imagina como esses momentos me preenchiam. Deitava-me com a cabeça
encostada a uma perna da mesa, uma mão levando o “biberão” à boca, a outra,
enrolando os cachos do cabelo. Aqui dentro, nesta cabeça que agora engendra
esta prosa, pássaros voavam sem fim. O mundo era perfeito. E era um pilar
fundamental de sua perfeição a minha solidão. Meu pai conversava comigo – eu não
queria conversar; minha mãe puxava conversa – eu não estava a fim; meus amigos
(eu quase não tinha) me puxavam para brincar – eu brincava, corria, chutava a
bola, mas “não me obriguem a falar”. Essa não-comunicação, essa introspeção e
solidão eram voluntárias. Eu amava isso. E isso mesmo preservei até hoje. Todavia,
como escrevera Camões, “o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas
qualidades”. Hoje, divido minhas horas do dia entre uma solidão involuntária e
uma solidão semi-voluntária. Nada mais há de voluntário na minha solidão. Como
estou permanentemente sozinho, não me deparo com qualquer opção. Eu, sozinho,
não tenho como escolher estar só. Minha solidão é agora uma espécie de
imposição. A vida, Deus, o que seja, fizeram isso comigo. E, um dia, os mesmos
agentes farão isso com você. Na solidão involuntária, ser-lhe-á imposta a
ausência do “objeto”, de um objeto que você muito quer. Essa solidão frustrá-lo-á
demais, acredite, pois o obrigará ao recolhimento dos seus desejos. Você não
terá mais a mãe, o pai, o tio, a irmã do seu lado, qualquer outro ente querido,
e essa solidão, essa falta doer-lhe-ão de tal modo que seu mundo parecerá que
se acaba. Doer-lhe-ão fisicamente, como uma lança atravessada no peito,
rasgando ventrículos e aorta, como um entalo permanente que dói a cada inspirar
e expirar. A ausência é física, e a dor que provoca é tão física quanto. Você
perceberá, então, que tudo é belo e perfeito quando a solidão é uma escolha,
mas tudo é agonizante e cruel quando ela vem contra nossa vontade. É tão
agonizante, tão psicologicamente avassalador e torturante que não encontramos
outra solução senão mascarar o que nos foi imposto. Por um artifício mental, a solidão
involuntária, forçada, dá lugar à solidão semi-voluntária, a uma espécie de
defesa que criamos que nos faz acreditar que estamos sozinhos porque queremos. Nesse
momento, as qualidades do objeto que perdemos são transferidas para outro. Este
outro é tão agradável e doce quanto aquele; é, como aquele, tão atraente e belo.
Mas, ao contrário do primeiro, não nos merece uma verdadeira ânsia de ter.
Talvez porque não suportaríamos outra solidão involuntária ou a negação de
outro desejo. Talvez porque tudo não passa de um fingimento. Afinal, é muito
normal e saudável termos amigos imaginários.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"Seja bem vindo quem vier por bem."