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20 dezembro 2019

3 x solidão


Nunca refleti o bastante sobre a solidão. Os momentos em que estive sozinho, aproveitei-os, via de regra, para debruçar-me sobre outros temas: a vida, Deus, a morte, o amor... E foram inúmeros. Eu sou, diria, um solitário nato. E na mais completa solidão, na contemplação do silêncio e paz dos azuis celestes e dos verdes naturais, encontrei sempre o mais puro gozo e satisfação. Nasci com a urgência do pensar, com a vontade de comunhão com as coisas, ao mesmo tempo com a força de um alheamento sem fim. Fui sempre um espectador, um sujeito que preferiu substancialmente a observação à ação, o assistir ao atuar, o olhar, ver, escutar ao reproduzir. Se a vida é um palco, eu agachei-me a um canto, num ponto cego, no escuro, onde ninguém me pudesse ver, intuindo tudo, adivinhando falas, imaginando caminhos, cogitando fins. A solidão nunca me atrapalhou; nunca foi um mal que pesava sobre mim. Pelo contrário, a solidão, ao menos momentânea, era uma espécie de ambição. “Deixem-me só, meu Deus! Eu preciso. Chega de som nos meus ouvidos, de barulho, gritaria...”, cotidianamente pedia. E, cotidianamente, minha esposa, divina, me deixava por uma ou duas horas estático, a tv ligada, o pensamento voando tão longe e distante que eu não pensava em nada. Às vezes, ela questionava: “estás a pensar em quê?”. Minha resposta quase invariável era: “em nada”. E eu pensava, de fato, em nada. E não sabia como explicar-lhe. Como se pensa em nada? Não sei. Era como se tudo, se todos os pensamentos me escapassem, como se me encontrasse num vazio sem fim, reconfortante, gostoso, longe de incômodos, desafios, problemas ou afins. Nesse vazio, nesse “poço cognitivo”, era feliz.
Minha vida, entretanto, mudou. Esses “poços cognitivos” são agora mais frequentes, mais rotineiros, mas minha felicidade em nada se agigantou. Sou tão-somente mais solitário ainda e percebo agora que existem diferentes tipos de solidão: a solidão voluntária, a solidão involuntária e a solidão semi-voluntária. Na solidão voluntária, você está sozinho porque quer. Você prefere isso, e disso sente até, por vezes, uma premente necessidade. Eu era assim. Lembro-me que quando era criança – com três, quatro anos –amava estar sozinho no quintal ou embaixo da mesa de meu avô. Enquanto ele costurava fraques, eu alinhavava minhas infantis filosofias. Você não imagina como esses momentos me preenchiam. Deitava-me com a cabeça encostada a uma perna da mesa, uma mão levando o “biberão” à boca, a outra, enrolando os cachos do cabelo. Aqui dentro, nesta cabeça que agora engendra esta prosa, pássaros voavam sem fim. O mundo era perfeito. E era um pilar fundamental de sua perfeição a minha solidão. Meu pai conversava comigo – eu não queria conversar; minha mãe puxava conversa – eu não estava a fim; meus amigos (eu quase não tinha) me puxavam para brincar – eu brincava, corria, chutava a bola, mas “não me obriguem a falar”. Essa não-comunicação, essa introspeção e solidão eram voluntárias. Eu amava isso. E isso mesmo preservei até hoje. Todavia, como escrevera Camões, “o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”. Hoje, divido minhas horas do dia entre uma solidão involuntária e uma solidão semi-voluntária. Nada mais há de voluntário na minha solidão. Como estou permanentemente sozinho, não me deparo com qualquer opção. Eu, sozinho, não tenho como escolher estar só. Minha solidão é agora uma espécie de imposição. A vida, Deus, o que seja, fizeram isso comigo. E, um dia, os mesmos agentes farão isso com você. Na solidão involuntária, ser-lhe-á imposta a ausência do “objeto”, de um objeto que você muito quer. Essa solidão frustrá-lo-á demais, acredite, pois o obrigará ao recolhimento dos seus desejos. Você não terá mais a mãe, o pai, o tio, a irmã do seu lado, qualquer outro ente querido, e essa solidão, essa falta doer-lhe-ão de tal modo que seu mundo parecerá que se acaba. Doer-lhe-ão fisicamente, como uma lança atravessada no peito, rasgando ventrículos e aorta, como um entalo permanente que dói a cada inspirar e expirar. A ausência é física, e a dor que provoca é tão física quanto. Você perceberá, então, que tudo é belo e perfeito quando a solidão é uma escolha, mas tudo é agonizante e cruel quando ela vem contra nossa vontade. É tão agonizante, tão psicologicamente avassalador e torturante que não encontramos outra solução senão mascarar o que nos foi imposto. Por um artifício mental, a solidão involuntária, forçada, dá lugar à solidão semi-voluntária, a uma espécie de defesa que criamos que nos faz acreditar que estamos sozinhos porque queremos. Nesse momento, as qualidades do objeto que perdemos são transferidas para outro. Este outro é tão agradável e doce quanto aquele; é, como aquele, tão atraente e belo. Mas, ao contrário do primeiro, não nos merece uma verdadeira ânsia de ter. Talvez porque não suportaríamos outra solidão involuntária ou a negação de outro desejo. Talvez porque tudo não passa de um fingimento. Afinal, é muito normal e saudável termos amigos imaginários.


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