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14 agosto 2012

A sogra por Leandro Gomes de Barros

        Ando por estes dias engendrando um novo cordel. É de costume que a prática seja rápida, nunca mais que um ou dois dias, problemas de ansiedade, mas com este, que escusarei até revelar o título, tenho até conseguido controlar-me. É doce e reconfortante volta e meia lá voltar. Uma hora um verso, outra hora uma estrofe. Pelo meio, sobra-me tempo e vontade de ler e conhecer mais e mais dos cordelistas nordestinos. E é nesses entremeios que dou um salto até os escritos de Leandro Gomes de Barros. Grande que foi o poeta! Um dos melhores. O melhor. Talvez.
        Por isso deixo aqui um dos muitos dele que já li, sem qualquer mudança, fiel ao original. Não estranhem a acentuação nem alguns termos escritos de forma que não mais se usa.


A alma de uma sogra
(de Leandro Gomes de Barros)

Em dias do mez passado
Vi n´uma reunião,
Um trocador de cavallos,
Um velho tabellião,
Um criado de um vigario
E a avó de um sachristão.

Veio uma dessas ciganas
Que lê a mão da pessoa,
Leu a mão de um velho e disse:
Vossa mercê anda atôa,
De cinco sogras que teve
Não obteve uma boa.

É muito exacto cigana
Disse o velho a suspirar,
A melhor de todas cinco,
Essa obrigou-me a chorar,
Depois de morta tres mezes,
Quase me faz expirar.

Disse o velho, minha vida,
Dá muito bem uma scena,
Dá um romance e um drama,
E a obra não é pequena,
O velho tabelião
Quase que chora com pena.

O velho ali descreveu
Todas scenas que deram
Alguns daquelles ali,
Foram escutar não poderam
Foi um serviço de gancho
O que essas sogras fizeram.

Então a primeira sogra,
Foi uma tal Marianna,
Tinha os dentes arqueados
Como a cobra canninana
Elle casou-se na quarta
Brigou no fim da semana.

A segunda era uma typa
Alta, magra e corcovada,
Damnada para passeios,
Enredadeira exaltada
Cavilosa e feiticeira,
Intrigante e dépravada.

Por felicidade delle
Chegou-lhe a fortuna um dia,
Deu a munganga na velha
Chegou-lhe a hydrophobia,
Foi morta a tiro no campo
Graças ao povo que havia.

A terceira se chamava
Genovéva bota-abaixo,
Espumava pela boca
Que a baba cahia em caixo,
Um dia partiu a elle
Fez-lhe da cabeça um facho.

A quarta era fogo-vivo
Se chamava Anna-Martello
Filha de uma tal medonha,
Bala de bronze, cutello,
Parecia um jacaré
Desses do papo amarello.

Era da côr de jibóia,
O rosto muito cascudo
E tinha no céo da bocca
Um dente grande e agudo
Essa engoliu pelas ventas
Um genro com roupa e tudo.

Meu amigo disse o velho,
Eu me casei innocente
Porque antes de me casar
A velha era tão prudente
Eu disse com os meus botões,
Tenho uma sogra excellente.

Depois que casei, um dia
Eu inda estava deitado
Vi a velha dar um pulo
E abecar o creado,
Arrancar-lhe o coração
E disse este, eu como assado.

Veio à porta do meu quarto,
Disse: pedaço de um burro,
Inda não se levantou?
Quer se levantar a murro?
Voscê, ou cria coragem,
Ou cria cheiro de esturro!...

A derradeira de todas
Não era muito ruim,
Me levantava algum falso,
Fallava muito de mim,
Eu teria me banhado
Se as outras fossem assim.

Sempre tinha alguns defeitos,
Mas também não era tanto,
Uma vez quis obrigar-me
Passar tres dias n´um canto,
Com um defuncto nas costas,
Fazendo oração a um santo.

Mas se ella não fosse assim
A velha fazia gosto
Me fazia algum favor
E depois lançava em rosto
Se brigavamos Ianeiro,
Ficavamos bem em Agosto.

Ella depois de morrer
Fez um papel temerario
Ajuntou-se co´a alma
Da avó de um boticario
E me passaram por sonho
Um dos contos de vigario.

Essa avó do boticario,
Em vida votou-me tedio
Por ter o neto botica
E eu não comprar remedio:
Morreu ella e minha sogra
Quase desgraçam meu predio.

Disse-me a velha em sonho,
Cave lá no pé do muro,
Lá achará uma jarra
Com moedas de ouro puro,
É teu e de minha filha,
Serão ricos no futuro.

Acordei disse á mulher
Tudo que tinha sonhado
Disse ella, vá atraz
Desse thesouro enterrado
Escavaque o pé do muro
Só se lá tiver peccado.

Então tornei a dormir
Ellas voltaram de novo
Me disseram a jarra lá
Está cheia que só um ovo
Mulher só diz é asneira
Vá excutar este povo!

Vá cavar no pé do muro,
Aonde teve um coqueiro,
Debaixo da raiz delle
Acha uma lage primeiro
E debaixo dessa lage
Tem a jarra de dinheiro.

De manhã me levantei
E fui logo para lá
Cavei, encontrei a lage
Disse contente oh! vem cá
Sabe o que achei? um cortiço
De bezouro mangangá.

Ali os bezouros todos
Frecharam em cima de mim,
Eu nem sei como corri,
Julguei ali ser meu fim,
Ouvi a velha gritar,
Bezouros bons, assim sim!

Passei um anno e dous mezes
Com febre sobre o chão duro,
Tinha febre todo dia
Trancado num quarto escuro
E a alma da damnada
Me esperando no monturo.

A mulher estava dormindo
Por sonho viu ella vir
E lhe disse minha filha
Tu não podes resistir
Eu trago aqui um escravo
Que vem para te servir.

A mulher lhe perguntou
E lá pelo mundo eterno
Existe tambem escravo?!
Filha lá tudo é moderno
Minha mai onde achou este?
Disse a velha, no inferno.

Minha mulher disse ali,
Jesus, Maria e José,
A velha espantou-se, e disse:
Atrevida! como é?
Que chama por tres pessoas
De quem eu perdi a fé.

Disse a velha se mordendo,
Eu parto senão me acabo,
Diabos carreguem meu genro,
Que nem sogra dá-lhe cabo,
Sahiram então se mordendo
A velha com o diabo.

Essa tal de bota-abaixo
No dia que ella morreu
Eu lhe mostrei uma imagem
Pois a velha inda se ergueu
Arrebatou-me a imagem
Deu um bote e me mordeu.

Depois de morta tres annos
Onde sepultaram ella
Nasceu em cima da cova
Tres toceiras de mazella
Um livro de nova seita
Achou-se no caixão della.

A cobra era nova seita
Eu conheci o mysterio
E eu pude conhecer
Que o acto não era serio,
Tanto que eu disse logo,
Desgraçou-se o cemitrio


        Este cordel faz parte da coleção digital do acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde poderá encontrar milhares de outros títulos da poesia popular.


2 comentários:

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