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25 junho 2014

O Mostrengo (IV)

E assim jurado assim foi
Não mais o viu a sucuri
Deu pra lá do sapo-boi
Em terras que eu nunca vi

Mas sei do que me contaram
Era lá tudo tão enorme
Que os anos, muitos, passaram
E de insônia se desdorme

Os homens eram de metros
Pra cima de três ou cinco
O rei usava oito cetros
Sete de ouro, só um de zinco

As aves tinham três bicos
Botavam ovos demais
E nas montanhas, nos picos
Tinha filhos de dez pais

Os gatos eram bicéfalos
E tinham mais de dez patas
Os cachorros, omacéfalos
Com haréns de vinte gatas

Burro casava com rã
Pirilampo com hiena
As combinações que há
Não era a confusão pequena

E davam filhos ao mundo
Paridores que nem ratos
Ia do besta ao mais profundo
Do mais disforme aos exatos

Tudo era exagerado, pois
Como exagerado conto
No lugar de um ponho dois
Em vez de vírgula ponto

O Mostrengo lá chegado
Deu sorte, conseguiu emprego
Auxiliar do deputado
Joaquim José Mondego

Botava cola nos selos
Das muitas e tantas cartas
Todas respostas a apelos
Soltando cobra e lagartas

Recebia só um salário
Que gastava todo em pinga
O patrão era um salafrário
"Merecia uma mandinga!"

Mandinga que nunca fez
Era de coração bom
Maldade não tinha vez
Funcionava noutro tom

E era bem bom o trabalho
Sejamos muito honestos
Era embaixo de um carvalho
Longe de olhares funestos

Sem contar a diversão
Nascida com as leituras
De seu colega Baião
Em determinadas alturas

Abria as cartas, ditava
O quanto havia escrito
O Mostrengo resmungava
Dava fé: "fado maldito!"

Mas um dia desses, porém
Leu Seu Baião o dito abaixo
Era essa carta de alguém
Cujo enredo eu aqui encaixo

"Caro José, deputado
Senhor de mui grande estima
Lhe apelo por tanto enfado
Meu humor não é ao de cima

Faz tempo que minha filha
Aos males do amor se deu
E segue teimosa a trilha
De um mostrengo que escafedeu

A união, eu juro, não aceito
Tenho uma reputação
Sou pessoa de respeito
Sei o que é certo e o que não

Bonito casa com lindo
Feio se enlaça no feio
Assim o mundo seguindo
Sem isso de termo meio

A natureza é quem manda
E o Senhor de sua sorte
Não casa água e lavanda
Casa não vida com morte

Como a Rosinha casar
Filha minha, gente fina
E não me desesperar
A minha razão não atina

Com o Mostrengo pior
Pois o mesmo não sonhei
Sonhei coisa bem melhor
Do que aquilo que encontrei

Por isso peço me ajude
Decrete do amor o fim
Eu fiz já tudo o que pude
Nada mais posso de mim"

Antes que continuasse
O Mostrengo suspirou
Pediu por favor parasse
Ai, não muito bem se achou

De repente um suor frio
Uma ligeira arritmia
Veio a recordação em fio
Do tanto, Deus, que a queria

"Amigo, fale ao patrão
Ausento-me hoje mais cedo
Eu não me sinto bem não
Que diabo, tenho medo

Amanhã as horas compenso
Boto selo quanto houver
Hoje o trabalho dispenso
Até mais, se Deus quiser!"

Foi bater junto do mar
Ouvia os peixes dizer:
"Dia bom para voar
Tomara pudesse ser"

E uma onda mais forte veio
Teimou de o enrolar
Benza Deus, que caso feio
Tonto não sabe nadar

Tamanha foi a agonia
Desse mar sempre puxando
Que até morrer não houve dia
Que não o ficasse lembrando

Salvou-o o pescador Tozé
Homem barbado, meio louco
Tinha seis dedos no pé
E ainda achava era pouco

E quando digo o salvou
É exato literalmente
Pois a uma bruxa o levou
Que o fez demais diferente

(continua)



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