O remetente e autor das mesmas, Francisco, seria um suposto namorado de minha tia-avó materna, Dolores de seu nome.
Consegui a custo arrancar de minha mãe uma ínfima informação sobre a vida da saudosa tia, a qual não cheguei a conhecer. Jovem, fora completamente apaixonada por esse moço, Francisco, culto e bem falante ao que consta, vizinho da nossa família em Esposende, Portugal. Mas, aos dezenove anos, circunstâncias da vida, desígnios do Senhor, minha tia-avó viu-se obrigada a deixar tudo para trás, o amor e o quase noivado, e seguir com meus bisavós para Salvador, Brasil, onde, aliás, minha família vive ainda hoje.
À época, o mundo tomado pela segunda grande guerra, meus bisavós, o Senhor Raul e a Dona Cidinha de Fão, parcos em recursos, roçando a extremidade mais penosa do miserável, viram uma viagem de navio para Vera Cruz, oferecida pelo prior Meireles, como uma forma irrecusável de transformarem e recomeçarem as suas vidas e arrancaram assim alguns trechos ou pedaços do que seria um outro destino, páginas e páginas de vida, e um pedacinho, nobre pedaço, do coração de Dolores.
E é só o que sei para além do que as próprias cartas me vão contando.
Cartas a Dolores
23 de Maio de 1943
Ontem fui ao mar. E era como se tudo me doesse. Até as ondas revoltas, que não moram aqui dentro, me doíam aqui dentro, nervosas e ligeiras. Sinto-me de ti mais próximo quando vou ao mar. Como uma criança que não mede distâncias te acredito lá atrás, clamando, alinhavando desejável futuro, logo depois do que minha visão alcança. Esforço-me. Se eu conseguisse ver mais além... Um metro! Um metro! Pudessem meus olhos, se desfaria essa cortina infame: espaço.
E nesse intento sequioso, ver-te!, frustrado vezes sem conta, encontro a dor. Essa dor não mensurável, corrosiva, d´alma contrariada, obsessiva...
E vejo um barco surgindo de luminoso sol espelhado nas águas, penso acenar, aqui capitão!, aqui!, me leve, meu naufrágio é nesta terra, mente turva, desvairada, de pó se me cobrem os pés, o tronco, os braços, meu ser outrora pleno-radiante... Aqui!, aqui!, capitão. Não teime, por favor, é longe!, o longe é uma definição, controversa por sinal... Da distância só uma sei, longitude invariável, aqui dentro meu coração bate quarenta graus para ocidente.
E não aceno, esse barco não tem capitão, esse barco não tem leme, esse barco nem vem lá.
Do teu Francisco
Bella historia.Já tens personagens para um romance, Ricardo ;)
ResponderExcluirComo o amor verdadeiro fala...Ainda avisou que o namorado era bem falante, mas não o imaginava deste calibre.
ResponderExcluirComo teria sido a resposta da tia Dolores...?
Será que ele escreveu e nunca teve resposta...?
Gracias, Sophia. São só umas cartas que eu encontrei. ;)
ResponderExcluirObrigado, Luís. Fica a pergunta, sim, como teria sido a resposta da tia Dolores. Vou ver se arranco mais alguma coisinha da minha mãe. Abraço.
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