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11 janeiro 2012

Família é uma merda (de Rubem Fonseca)

   Tenho uma saúde de ferro, mas andava sentindo umas dores de cabeça e fui à farmácia comprar aspirina. Foi assim que conheci Genoveva. Ela me perguntou para que eu queria aspirina.

   “Para dor de cabeça”.
   “Aspirina ataca o estômago”.


   Se ela trabalhava numa farmácia devia saber o que estava dizendo.

   “Então eu tomo o quê?”

   “Tylenol.”

   “Já tomei esse troço e não passou a dor”. 



   Ficamos batendo um papo, não tinha outros fregueses na farmácia. Ela morava na rua do Camerino, logo no início, perto da farmácia, que ficava na rua Larga, também conhecida como Marechal Floriano. Eu morava no Santo Cristo.
   Gostei de Genoveva. Mesmo sem estar com dor de cabeça, voltei à farmácia no dia seguinte.

   “Já acabou o Tylenol?”

   “Vim só dizer oi para você”.

   ”Oi.Como é o seu nome?”.

   “Valdo”.

   “Parece nome de jogador de futebol. Você joga futebol?”

   “Jogo. Pelada. Todo brasileiro joga futebol”.

   “O meu é Geni”.

   Depois desse dia, começamos a namorar. O problema é que eu tinha que namorar escondido dos meus irmãos e da minha mãe. Eu gostava da Genoveva, mas ela era feia, nem muito gorda nem muito magra, nem tinha a pele ruim, mas era feia. Não sei como explicar a feiúra da Genoveva. Se fosse uma garota bonita era mais fácil.

   Já namorávamos havia dois meses quando Genoveva me disse que a mãe dela queria me conhecer. As confusões entre namorados sempre começam quando as famílias se metem no meio. A velha ia achar uma porção de defeitos em mim.

   Mas não foi nada disso. A velha disse:

   “Genoveva, seu namorado é muito bonito e educado”.

   “Mamãe, eu disse a ele que me chamava Geni, a senhora sabe que eu não gosto desse nome.

   “Se o moço vai casar com você tem que saber o seu nome verdadeiro.”

   “Meu nome também não é Valdo. É Oduvaldo”.

   “Acho Oduvaldo bonito’; disse a garota.

   “Eu acho Genoveva mais ainda”.

   Depois a mãe foi ver televisão no quarto onde as duas dormiam. A casa era pequena. Ficamos sozinhos no sofá da sala e eu não fiz nada. Não fiz nada porque Genoveva era virgem e eu não queria mandar o cabaço dela pro espaço, aquela coisa de a mãe falar em casamento me deixou arrepiado. Tirar cabaço é coisa feita no impulso, e a mulher sempre embucha. Aí o cara tem que casar. Eu até casava com Genoveva, se não fosse a minha família. Todo mundo na minha casa era bonito. Como é que eu ia chegar e dizer, olha aqui pessoal, vou casar com esta moça feia? Ainda por cima, no momento nem estou trabalhando, quem me sustenta é o meu irmão que tem um restaurante no Santo Cristo. Ele é casado com uma dona que podia trabalhar no cinema.

   Santo Cristo é um lugar perfeito, nasci e me criei lá, não tem boteco, loja, oficina, casa que eu não conheça, pelo menos por fora. Sei onde se pode comer uma boa gororoba, claro que o melhor lugar é o restaurante do meu irmão. Santo Cristo é um paraíso, eu podia passar a vida sem sair do bairro nem para ir à praia. Como é que fui comprar um remédio para dor de cabeça na rua Larga, se Santo Cristo tem suas farmácias? Foi o destino. O destino arma essas coisas pra cima da gente, colocou Genoveva no meu caminho.

   “Você não gosta do lugar onde mora?”

   “Por quê?”

   “Nunca me leva para passear em Santo Cristo”.

   “Não gosto daquele bairro. Prefiro a Tijuca. Já morei na rua dos Araújos”.

   Era mentira. Eu detestava a Tijuca, mas não queria andar pelo Santo Cristo e ser visto com Genoveva. Quem morava na rua dos Araújos era uma meio-prima minha, a Glorinha, nós namoramos até que eles se mudaram para a Barra e eu inventei que isso complicou o namoro. Foi um pretexto, ela era bonita, gostava de mim, mas eu não gostava dela e dizem que filhos de primos podem nascer aleijados. Meus irmãos, apesar de detestarem a nossa tia, que era irmã da minha mãe por parte de pai, achavam que seria um casamento perfeito para mim. O pai dela, sócio de uma companhia de ônibus na Baixada, podia me arrumar um emprego, já que eu não queria ser garçom no restaurante do meu irmão. Eu não era daqueles caras que inventam que estão desempregados porque não encontram emprego, eu não encontrava mesmo, só não queria ser garçom.

   ‘‘Você não vai me apresentar sua família? Você nunca fala dela”.

   ‘‘Qualquer dia desses”.

   “Eu te apresentei minha mãe. Não tenho pai. Você tem pai e mãe?”

   “Sou igual a você, só tenho mãe. Mas ela não gosta de receber visita”.

   “Também não tem irmãos?”

   Você nunca conta uma mentira apenas. Vem sempre uma porrada delas, de enxurrada. Acho que eu dizia pelo menos uma mentira por dia para Genoveva. Eu gostava dela, mas não podia gostar dela, uma mulher bonita pode gostar de um homem feio, mas nenhum homem pode gostar de uma mulher feia, o mundo é assim. Se eu tivesse dinheiro para sair de casa, fugia com ela. E o trambolho da mãe, o que a gente ia fazer com aquilo? Quem sustentava a velha era a Genoveva, com a merreca que ganhava na farmácia, e olha que ela era a gerente.

   Como diz o ditado, é mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo. Coxo é uma espécie de perneta. Um dia fui apanhar Genoveva na farmácia na hora do almoço, íamos comer um sanduíche com caldo de cana num pé-sujo da rua do Acre e descíamos pela rua Larga quando ouvi uma voz:

   “Oduvaldo, Oduvaldo”

   Reconheci a voz, fingi que não ouvi. Continuei andando, mas Genoveva parou, olhou para trás.

   “Tem uma moça te chamando”.

   “Moça? Deixa pra lá, vamos embora”.

   Mas a minha irmã já tinha chegado perto.

   “Hoje é o aniversário de Clodoaldo. Não vá se esquecer Oito horas. Você é meio cabeça-tonta.”

   Lá em casa todos os nomes de homem terminam em aldo. E o nome das mulheres em alva.


   “Não vai me apresentar a sua amiga?”


   “É a moça da farmácia”.


   “Eu sou irmã dele. Marialva, muito prazer”.

   “Muito prazer, Geni. Pensei que estava viajando”.

   “Viajando? Quem me dera.”

   “O que você está fazendo aqui na rua Larga?’ perguntei, irritado.

   “Vim comprar o presente do Clodoaldo. Você está aborrecido com alguma coisa?”

   “Temos que ir, tchau” eu disse, puxando Genoveva.

   O caldo de cana naquele dia estava com gosto ruim. Genoveva não comeu o sanduíche. Disse estar sem fome e não falou mais nada. Quando voltávamos para a farmácia, me perguntou:

   “Por que você não me apresentou como sua namorada? Moça da farmácia? Moça da farmácia?”

   “Eu não quis, sabe como é, dizer assim, sem mais nem menos, esta é minha namorada, minha irmã ia dizer, meu irmão tinha uma namorada e não apresentava para a gente. Sabe como é, ia ficar esquisito”.

   “Ela não estava viajando? Ou você está me engrupindo?”

   “Que é isso, Genoveva? Está zangada?”

   “Estou zangada, sim”.

   “Eu um dia te apresento a eles”.

   “Por que não me leva no aniversário do, do, como é o nome dele? Do seu irmão”.

   “Clodoaldo. Assim, sem mais nem menos?”

   “Como, sem mais nem menos? Tem que chegar uma hora para isso”.

   “Não sei se a hora certa é numa festa de aniversário sem graça, com bolo e parabéns para você”.

   Eu e o Clodoaldo fazíamos anos no mesmo mês, mas Genoveva não sabia disso, eu não podia dizer para ela que minha família ia dar uma festa para mim nos próximos dias, no meu aniversário. Eu não podia levar a garota na minha casa. Família é uma merda.

   “Você pensa que eu sou boba, não pensa?”

   “Que é isso, Genoveva?”

   “Pára de dizer o que é isso. Isso é isso mesmo. Não me leva até a farmácia, quero pensar, você está me atrapalhando”.

   Ela saiu correndo, correndo mesmo, como se estivesse disputando os cem metros rasos.

   Cheguei às oito em ponto na festa do Clodoaldo, no restaurante dele, fechado para os fregueses naquela noite. Entre os presentes que ganhou, o único mixuruca foi o escudo do Vasco que dei a ele, mas Clodoaldo era um vascaíno fanático e gostou do escudinho, além disso sabia que eu estava na pindaíba. Fiquei espiando a minha família, todo mundo elegante, todos bonitos e bem de vida, a mulher do Clodoaldo era bonita, a do Reinaldo, que tem uma oficina mecânica, era bonita, até minha mãe, que era velha, era bonita, o único que era apenas bonito e não estava se dando bem na vida era eu, mas beleza não põe mesa, a menos que você seja mulher, como dizem.

   Além da minha mãe e dos meus irmãos, estavam na festa os amigos deles. Eu não tenho amigos. Vá lá, os amigos deles são também um pouco meus amigos. Todo mundo bebeu, teve cantoria, gargalhadas, tudo numa boa, eu também bebi, mas não adiantou nada, a cerveja e o vinho tiveram o mesmo efeito que chá de agrião, só me deixaram enjoado.

   “O Oduvaldo arranjou uma namorada” anunciou Marialva, lá para as tantas.

   Todo mundo caiu na minha pele. Disseram um monte de besteiras, contaram piadinhas.

   “Esse cara é um moita” disse Ronaldo.

   “Quem é a moça?” perguntou minha mãe.

   “Trabalha numa farmácia” disse Marialva.

   “A Jaqueline? Aquela garota é um anjo”.

   “Ela não trabalha na farmácia daqui, mãe. Acho que é numa das farmácias da rua Larga. Os dois estavam andando pela rua Larga. O nome dela é Geni”.

   Ouvi mais um monte de piadinhas idiotas. Marialva não contou que Geni era feia. Para falar a verdade, Marialva era legal, estava noiva de um médico, ia casar com ele, o cara estava na festa, era meio prosa, sabe como são esses médicos, mas não era mau sujeito, muito gentil com todos nós, mas graças a Deus eu não precisava dos serviços dele, o cara era médico de hemorróidas. Além de bacana, o puto também era bonito. Porra, tinha gente feia pra caralho no Brasil, menos na minha família? Que merda.

   No dia seguinte passei na farmácia. Genoveva estava emburrada.

   “O senhor deseja algum produto?”

   “Quero falar com você”.

   “Não temos nada a conversar. Estou muito ocupada” disse, virando as costas e se escondendo no fundo da farmácia.

   Eu estava numa sinuca de bico. Não podia apresentar Genoveva à minha família, eu ia morrer de vergonha, estava também com vergonha de mim mesmo, de ser um babaca, acho que era porque perdi o meu emprego e não conseguia arranjar outro, larguei o colégio no meio porque só gostava de jogar bilhar e bater bola, minha mãe e os meus irmãos deviam me encher de porrada, mas passavam a mão na minha cabeça.

   Fiquei rondando a porta da farmácia até a hora de fechar. Quando Genoveva saiu, cheguei perto dela e disse:

   “Quero te pedir perdão”.

   Nenhuma mulher resiste quando um homem pede perdão. Ela olhou para mim, viu alguma coisa na minha cara e me perdoou.

   “Está perdoado” disse, me dando um beijo no rosto.

   Perdão eu pedi de verdade, mas o que disse em seguida era meio verdade meio mentira.

   “Não te apresentei minha família porque eles são todos metidos a besta, só por isso”. Eles eram mesmo metidos a besta, até minha mãe, que se chamava Ednalva, era metida a besta, mas o motivo não era só esse, era como a minha família ia reagir quando visse a feiúra de Genoveva.

   “E qual é o problema de eles serem convencidos? Qual é o problema?”

   Consegui driblar o assunto e me separei dela numa boa, mas Genoveva parecia preocupada com alguma coisa.

   No dia seguinte ao aniversário de Clodoaldo, me deu uma coisa e eu chamei Marialva para uma conversa particular. Disse a ela que estava apaixonado por Genoveva. Se você quer abrir o seu peito, abra para uma mulher. Se ela for sua irmã, é claro. Mãe é mais complicado, mãe é boa numas coisas, noutras é melhor a irmã.

   “Aquela moça da rua Larga?” perguntou Marialva.

   “Aquela.”

   “Muito apaixonado?”

   “Loucamente apaixonado. Não posso viver sem ela. Sei que ela é feia, mas não posso viver sem ela”.

   ‘‘Existe gente mais feia do que aquela moça”.

   Depois, Marialva não disse mais nada. Mordeu o beiço de baixo, só isso.

   Fiquei andando pela rua, passei na porta do bilhar, resolvi que não ia jogar sinuca nunca mais, nem pelada de futebol, sei que ia sofrer por isso, mas a minha vida já estava mesmo um lixo. Ainda por cima, na quinta-feira era o dia do meu aniversário; a minha família sempre fazia uma festa para mim e eu não ia levar a Genoveva. Se ela soubesse, eu estava frito, Genoveva se chateou só porque não a convidei para o aniversário do Clodoaldo. Eu estava no mato sem cachorro.

   Fiquei dois dias sem ver Genoveva. No dia do meu aniversário, cheio de remorso, dei uma passada na farmácia. Pensei que ela ia me dar um esporro, mas me recebeu com um sorriso. Achei esquisito, mas a gente nunca sabe o que uma mulher está pensando.

   “Passei aqui só para te dizer que te amo”.

   “Mais alguma coisa?”

   “Não, só isso. A gente se vê amanhã?”

   “Está bom, a gente se vê amanhã” disse ela, sempre rindo. Parecia ter pirado completamente”.

   O meu aniversário foi na casa da minha mãe. Eu morava na casa da minha mãe, acontece com os caçulas, ainda mais temporão e desempregado, como eu. Estava a turma toda lá, meus irmãos, as mulheres dos meus irmãos, o doutor da Marialva, aqueles bestalhões todos. A festa mal havia começado quando minha mãe disse:

   “Marialva, vai pegar o presente do Oduvaldo”.

   Minha irmã desapareceu por algum tempo.

   A campainha da porta tocou, e todos começaram a cantar, parabéns para você. Aquela musiquinha me dava nojo.

   Então minha mãe abriu a porta e surgiu Marialva, puxando Genoveva pela mão.

   “Genoveva…? eu disse, surpreso.

   “Não tem tanta farmácia assim na rua Larga, foi fácil encontrar a moça” disse Marialva.

   Tive vontade de chorar, acho que é porque estava desempregado, e sujeito desempregado fica fraco. Para falar a verdade, meus olhos ficaram úmidos quando abracei Genoveva. Depois abracei os meus parentes e todos cobriram Genoveva de beijos. Minha mãe trouxe um bolo da cozinha, cheio de velas acesas.

   Estou casado com Genoveva. Minha família gosta muito dela, dizem que é meiga, prestativa e cuida bem de mim. Trabalho como garçom no restaurante do Clodoaldo. Não é tão ruim assim, ser garçom, e o meu irmão me ofereceu sociedade. Estou dando duro, sem hora para entrar nem sair.

   Quem foi que disse que família é uma merda?


Um comentário:

"Seja bem vindo quem vier por bem."