E até agora não li muito. Li "A mulher mais linda da cidade e outras histórias" e comecei a ler "Numa fria". De todos, houve uns dois ou três de que mais gostei. Entre eles o tal da mulher mais linda, o do kid foguete no matadouro e o "você aconselharia alguém a ser escritor?".
Não sendo um crítico literário, tampouco um entendido em Bukowski, digo apenas ter ficado às vezes agradado, às vezes maravilhado com a sua escrita. Até porque o velho Buk tem tudo pra me poder cativar. Sou um defensor, apologista, fã, como quiserem, dos relatos que nos aproximam e nos revelam o cotidiano, das crônicas meio corriqueiras e banais dos episódios da nossa vida. Embora a vida de Buk não seja banal. Longe de mim tal afirmação. Tampouco seja corriqueira.
O segredo de Buk é a simplicidade, a falta de pudor. Ele diz o que quer, escreve o que quer, pensa o que quer. E tem a coragem de o mostrar, assim como tem a coragem de nos mostrar como piores somos, como mais feios, porcos ou ridículos possamos parecer. Bukowski retrata as coisas como elas são. Cínico, desistente, absurdo... Sim, é absurdo pensar que alguém queira que quebre uma asa do avião em que viaja, como ele afirma em "você aconselharia alguém a ser escritor?", mas, e é aí que tá todo o encanto do velho Buk, ele diz, ele fala, escreve, não temendo parecer ridículo, alguns dos pensamentos mais bestas que nos tomam a cabeça.
Buk é triste, um boêmio afundado em uísque, alguém que parece desistir da vida, ou pelo menos da alegria que lhe possa estar adjacente, e por entre um e outro conto, irônico e sagaz, nos mostra/leva a viver um e outro capítulo do nosso cotidiano.
Salvação? Onde? Nos bares soturnos, em garrafas e drinques, em mulheres gostosas, com bunda, nos orgasmos, na cama com a mulher mais linda da cidade... Buk se limita. E seus personagens, auto-biográficos ou não, são de uma tristeza piedosa e comovente, meio que fracos e sem gosto; sem gosto pela vida.
Pois o acúmulo de experiências com álcool ou drogas ou crimes, viver a vida no máximo, não é senão o sinal de uma insatisfação com o pouco que a vida dá, a fuga ao aborrecimento tão presente nos seus relatos.
"Eu não tinha interesses. Eu não tinha interesses por nada. Não fazia a mínima ideia de como iria escapar. Os outros, ao menos, tinham algum gosto pela vida. Pareciam entender algo que me era inacessível. Talvez eu fosse retardado. Era possível. Frequentemente me sentia inferior. Queria apenas encontrar um jeito de me afastar de todo mundo. Mas não havia lugar para ir. Suicídio? Jesus Cristo, apenas mais trabalho. Sentia que o ideal era poder dormir por uns cinco anos, mas isso eles não permitiriam." (Charles Bukowski)
Mas sem mais demoras...
A mulher mais linda da cidade (de Charles Bukowski)
Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo. Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio termo. Segundo alguns, era louca. Opinião de apáticos. Que jamais poderiam compreendê-la. Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e pouco estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções, na hora agá sempre encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão.
O pai havia morrido alcoólatra e a mãe fugira de casa, abandonando as filhas. As meninas procuraram um parente, que resolveu interná-las num convento. Experiência nada interessante, sobretudo para Cass. As colegas eram muito ciumentas e teve que brigar com a maioria. Trazia marcas de lâmina de gilete por todo o braço esquerdo, de tanto se defender durante suas brigas. Guardava, inclusive, uma cicatriz indelével na face esquerda, que em vez de empanar-lhe a beleza, só servia para realçá-la.
ilustração de Mag Barbosa para o conto "A mulher mais linda da cidade"
- Quer um drinque? — perguntei.
- Claro, por que não?
Não creio que houvesse nada de especial na conversa que tivemos essa noite. Foi mais a impressão que causava. Tinha me escolhido e ponto final. Sem a menor coação. Gostou da bebida e tomou varias doses. Não parecia ser de maior idade, mas, não sei como, ninguém se recusava a servi-la. Talvez tivesse carteira de identidade falsa, sei lá. O certo é que toda vez que voltava do toalete para sentar do meu lado, me dava uma pontada de orgulho. Não só era a mais linda mulher da cidade como também das mais belas que vi em toda minha vida. Passei-lhe o braço pela cintura e dei-lhe um beijo.
- Me acha bonita? - perguntou.
- Lógico que acho, mas não é só isso… é mais que uma simples questão de beleza…
- As pessoas sempre me acusam de ser bonita. Acha mesmo que eu sou?
- Bonita não é bem o termo, e nem te faz justiça.
Cass meteu a mão na bolsa. Julguei que estivesse procurando um lenço. Mas tirou um longo grampo de chapéu. Antes que pudesse impedir, já tinha espetado o tal grampo, de lado, na ponta do nariz. Senti asco e horror.
Ela me olhou e riu.
- E agora, ainda me acha bonita? O que é que você acha agora, cara?
Puxei o grampo, estancando o sangue com o lenço que trazia no bolso. Diversas pessoas, inclusive o sujeito que atendia no balcão, tinham assistido a cena. Ele veio até a mesa:
- Olha - disse para Cass, - se fizer isso de novo, vai ter que dar o fora. Aqui ninguém gosta de drama.
- Ah, vai te foder, cara!
- É melhor não dar mais bebida pra ela - aconselhou o sujeito.
- Não tem perigo - prometi.
- O nariz é meu - protestou Cass, - faço dele o que bem entendo.
- Não faz, não - retruquei, - porque isso me dói.
- Quer dizer que eu cravo o grampo no nariz e você é que sente dor?
- Sinto, sim. Palavra.
- Está bem, pode deixar que eu não cravo mais. Fica sossegado.
Me beijou, ainda sorrindo e com o lenço encostado no nariz. Na hora de fechar o bar, fomos para onde eu morava. Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traia sem se dar conta. Ao mesmo tempo que se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira preciosidade. Uma jóia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse eu.
Deitamos na cama e, depois que apaguei a luz, Cass perguntou:
- Quando é que você quer transar? Agora ou amanhã de manhã?
- Amanhã de manhã - respondi, - virando de costas pra ela.
No dia seguinte me levantei e fiz dois cafés. Levei o dela na cama.
Deu uma risada.
- Você é o primeiro homem que conheço que não quis transar de noite.
- Deixa pra lá - retruquei, - a gente nem precisa disso.
- Não, pára aí, agora me deu vontade. Espera um pouco que não demoro.
Foi até o banheiro e voltou em seguida, com uma aparência simplesmente sensacional - os longos cabelos pretos brilhando, os olhos e a boca brilhando, aquilo brilhando… Mostrava o corpo com calma, como a coisa boa que era. Meteu-se em baixo do lençol.
- Vem de uma vez, gostosão.
Deitei na cama.
Beijava com entrega, mas sem se afobar. Passei-lhe as mãos pelo corpo todo, por entre os cabelos. Fui por cima. Era quente e apertada. Comecei a meter devagar, compassadamente, não querendo acabar logo. Os olhos dela encaravam, fixos, os meus.
- Qual é o teu nome? - perguntei.
- Porra, que diferença faz? - replicou.
Ri e continuei metendo. Mais tarde se vestiu e levei-a de carro de novo para o bar. Mas não foi nada fácil esquecê-la. Eu não andava trabalhando e dormi até às 2 da tarde. Depois levantei e li o jornal. Estava na banheira quando ela entrou com uma folhagem grande na mão - uma folha de inhame.
- Sabia que ia te encontrar no banho - disse, - por isso trouxe isto aqui pra cobrir esse teu troço aí, seu nudista.
E atirou a folha de inhame dentro da banheira.
- Como adivinhou que eu estava aqui?
- Adivinhando, ora.
Chegava quase sempre quando eu estava tomando banho. O horário podia variar, mas Cass raramente se enganava. E tinha todos os dias a folha de inhame. Depois a gente trepava.
Houve uma ou duas noites em que telefonou e tive que ir pagar a fiança para livrá-la da detenção por embriaguez ou desordem.
- Esses filhos da puta - disse ela, - só porque pagam umas biritas pensam que são donos da gente.
- Quem topa o convite já está comprando barulho.
- Imaginei que estivessem interessados em mim e não apenas no meu corpo.
- Eu estou interessado em você e também no seu corpo. Mas duvido muito que a maioria não se contente com o corpo.
Me ausentei seis meses da cidade, vagabundeei um pouco e acabei voltando. Não esqueci Cass, mas a gente havia discutido por algum motivo qualquer e me deu vontade de zanzar por aí. Quando cheguei, supus que tivesse sumido, mas nem fazia meia hora que estava sentado no West End Bar quando entrou e veio sentar do meu lado.
- Como é, seu sacana, pelo que vejo já voltou.
Pedi bebida para ela. Depois olhei. Estava com um vestido de gola fechada. Cass jamais tinha andado com um traje desses. E logo abaixo de cada olheira, espetados, havia dois grampos com ponta de vidro. Só dava para ver as pontas, mas os grampos, virados para baixo, estavam enterrados na carne do rosto.
- Porra, ainda não desistiu de estragar sua beleza?
- Que nada, seu bobo, agora é moda.
- Pirou de vez.
- Sabe que sinto saudade - comentou.
- Não tem mais ninguém no pedaço?
- Não, só você. Mas agora resolvi dar uma de puta. Cobro dez pratas. Pra você, porém, é de graça.
- Tira esses grampos daí.
- Negativo. É moda.
- Estão me deixando chateado.
- Tem certeza?
- Claro que tenho, pô.
Cass tirou os grampos devagar e guardou na bolsa.
- Por que é que faz tanta questão de esculhambar o teu rosto? - perguntei. - Quando vai se conformar com a idéia de ser bonita?
- Quando as pessoas pararem de pensar que é a única coisa que eu sou. Beleza não vale nada e depois não dura. Você nem sabe a sorte que tem de ser feio. Assim, quando alguém simpatiza contigo, já sabe que é por outra razão.
- Então tá. Sorte minha, né?
- Não que você seja feio. Os outros é que acham. Até que a tua cara é bacana.
- Muito obrigado.
Tomamos outro drinque.
- O que anda fazendo? - perguntou.
- Nada. Não há jeito de me interessar por coisa alguma. Falta de ânimo.
- Eu também. Se fosse mulher, podia ser puta.
- Acho que não ia gostar de um contato tão íntimo com tantos caras desconhecidos. Acaba enchendo.
- Puro fato, acaba enchendo mesmo. Tudo acaba enchendo.
Saímos juntos do bar. Na rua as pessoas ainda se espantavam com Cass. Continuava linda, talvez mais do que antes.
Fomos para o meu endereço. Abri uma garrafa de vinho e ficamos batendo papo. Entre nós dois a conversa sempre fluía espontânea. Ela falava um pouco, eu prestava atenção, e depois chegava a minha vez. Nosso diálogo era sempre assim, simples, sem esforço nenhum. Parecia que tínhamos segredos em comum. Quando se descobria um que valesse a pena, Cass dava aquela risada - da maneira que só ela sabia dar. Era como a alegria provocada por uma fogueira. Enquanto conversávamos, fomos nos beijando e aproximando cada vez mais. Ficamos com tesão e resolvemos ir para a cama, Foi então que Cass tirou o vestido de gola fechada e vi a horrenda cicatriz irregular no pescoço - grande e saliente.
- Puta que pariu, criatura - exclamei, já deitado. - Puta que pariu. Como é que você foi me fazer uma coisa dessas?
- Experimentei uma noite, com um caco de garrafa. Não gosta mais de mim? Deixei de ser bonita?
Puxei-a para a cama e dei-lhe um beijo na boca. Me empurrou para trás e riu.
- Tem homens que me pagam as dez pratas, aí tiro a roupa e desistem de transar. E eu guardo o dinheiro pra mim. É engraçadíssimo.
- Se é - retruquei, - estou quase morrendo de tanto rir… Cass, sua cretina, eu amo você… mas pára com esse negócio de querer se destruir. Você é a mulher mais cheia de vida que já encontrei.
Beijamos de novo. Começou a chorar baixinho. Sentia-lhe as lágrimas no rosto. Aqueles longos cabelos pretos me cobriam as costas feito mortalha. Colamos os corpos e começamos a trepar, lenta, sombria e maravilhosamente bem.
Na manhã seguinte acordei com Cass já em pé, preparando o café. Dava a impressão de estar perfeitamente calma e feliz. Até cantarolava. Fiquei ali deitado, contente com a felicidade dela. Por fim veio até a cama e me sacudiu.
- Levanta, cafajeste! Joga um pouco de água fria nessa cara e nessa pica e vem participar da festa!
Naquele dia convidei-a para ir à praia de carro. Como estávamos na metade da semana e o verão ainda não tinha chegado, encontramos tudo maravilhosamente deserto. Ratos de praia, com a roupa em farrapos, dormiam espalhados pelo gramado longe da areia. Outros, sentados em bancos de pedra, dividiam uma garrafa de bebida tristonha. Gaivotas esvoaçavam no ar, descuidadas e no entanto aturdidas. Velhinhas de seus 70 ou 80 anos, lado a lado nos bancos, comentavam a venda de imóveis herdados de maridos mortos há muito tempo, vitimados pelo ritmo e estupidez da sobrevivência. Por causa de tudo isso, respirava-se uma atmosfera de paz e ficamos andando, para cima e para baixo, deitando e espreguiçando-nos na relva, sem falar quase nada. Com aquela sensação simplesmente gostosa de estar juntos. Comprei sanduíches, batata frita e uns copos de bebida e nos deixamos ficar sentados, comendo na areia. Depois me abracei a Cass e dormimos encostados um no outro durante quase uma hora. Não sei por quê, mas foi melhor do que se tivessemos transado. Quando acordamos, voltamos de carro para onde eu morava e fiz o jantar. Jantamos e sugeri que fossemos para a cama. Cass hesitou um bocado de tempo, me olhando, e ao respondeu, pensativa:
- Não.
Levei-a outra vez até o bar, paguei-lhe um drinque e vim-me embora. No dia seguinte encontrei serviço como empacotador numa fábrica e passei o resto da semana trabalhando. Andava cansado demais para cogitar de sair à noite, mas naquela sexta-feira acabei indo ao West End Bar. Sentei e esperei por Cass. Passaram-se horas. Depois que já estava bastante bêbado, o sujeito que atendia no balcão me disse:
- Uma pena o que houve com sua amiga.
- Pena por quê? - estranhei.
- Desculpe. Pensei que soubesse.
- Não.
- Se suicidou. Foi enterrada ontem.
- Enterrada? - repeti.
Estava com a sensação de que ela ia entrar a qualquer momento pela porta da rua. Como poderia estar morta?
- Sim, pelas irmãs.
- Se suicidou? Pode-se saber de que modo?
- Cortou a garganta.
- Ah. Me dá outra dose.
Bebi até a hora de fechar. Cass, a mais bela das 5 irmãs, a mais linda mulher da cidade. Consegui ir dirigindo até onde morava. Não parava de pensar. Deveria ter insistido para que ficasse comigo em vez de aceitar aquele “não”. Todo o seu jeito era de quem gostava de mim. Eu é que simplesmente tinha bancado o durão, decerto por preguiça, por ser desligado demais. Merecia a minha morte e a dela. Era um cão. Não, para que pôr a culpa nos cães? Levantei, encontrei uma garrafa de vinho e bebi quase inteira. Cass, a garota mais linda da cidade, morta aos vinte anos.
Lá fora, na rua, alguém buzinou dentro de um carro. Uma buzina fortíssima, insistente. Bati a garrafa com força e gritei:
- MERDA! PÁRA COM ISSO, SEU FILHO DA PUTA!
A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada.
- Nada. Não há jeito de me interessar por coisa alguma. Falta de ânimo.
- Eu também. Se fosse mulher, podia ser puta.
- Acho que não ia gostar de um contato tão íntimo com tantos caras desconhecidos. Acaba enchendo.
- Puro fato, acaba enchendo mesmo. Tudo acaba enchendo.
Saímos juntos do bar. Na rua as pessoas ainda se espantavam com Cass. Continuava linda, talvez mais do que antes.
Fomos para o meu endereço. Abri uma garrafa de vinho e ficamos batendo papo. Entre nós dois a conversa sempre fluía espontânea. Ela falava um pouco, eu prestava atenção, e depois chegava a minha vez. Nosso diálogo era sempre assim, simples, sem esforço nenhum. Parecia que tínhamos segredos em comum. Quando se descobria um que valesse a pena, Cass dava aquela risada - da maneira que só ela sabia dar. Era como a alegria provocada por uma fogueira. Enquanto conversávamos, fomos nos beijando e aproximando cada vez mais. Ficamos com tesão e resolvemos ir para a cama, Foi então que Cass tirou o vestido de gola fechada e vi a horrenda cicatriz irregular no pescoço - grande e saliente.
- Puta que pariu, criatura - exclamei, já deitado. - Puta que pariu. Como é que você foi me fazer uma coisa dessas?
- Experimentei uma noite, com um caco de garrafa. Não gosta mais de mim? Deixei de ser bonita?
Puxei-a para a cama e dei-lhe um beijo na boca. Me empurrou para trás e riu.
- Tem homens que me pagam as dez pratas, aí tiro a roupa e desistem de transar. E eu guardo o dinheiro pra mim. É engraçadíssimo.
- Se é - retruquei, - estou quase morrendo de tanto rir… Cass, sua cretina, eu amo você… mas pára com esse negócio de querer se destruir. Você é a mulher mais cheia de vida que já encontrei.
Beijamos de novo. Começou a chorar baixinho. Sentia-lhe as lágrimas no rosto. Aqueles longos cabelos pretos me cobriam as costas feito mortalha. Colamos os corpos e começamos a trepar, lenta, sombria e maravilhosamente bem.
Na manhã seguinte acordei com Cass já em pé, preparando o café. Dava a impressão de estar perfeitamente calma e feliz. Até cantarolava. Fiquei ali deitado, contente com a felicidade dela. Por fim veio até a cama e me sacudiu.
- Levanta, cafajeste! Joga um pouco de água fria nessa cara e nessa pica e vem participar da festa!
Naquele dia convidei-a para ir à praia de carro. Como estávamos na metade da semana e o verão ainda não tinha chegado, encontramos tudo maravilhosamente deserto. Ratos de praia, com a roupa em farrapos, dormiam espalhados pelo gramado longe da areia. Outros, sentados em bancos de pedra, dividiam uma garrafa de bebida tristonha. Gaivotas esvoaçavam no ar, descuidadas e no entanto aturdidas. Velhinhas de seus 70 ou 80 anos, lado a lado nos bancos, comentavam a venda de imóveis herdados de maridos mortos há muito tempo, vitimados pelo ritmo e estupidez da sobrevivência. Por causa de tudo isso, respirava-se uma atmosfera de paz e ficamos andando, para cima e para baixo, deitando e espreguiçando-nos na relva, sem falar quase nada. Com aquela sensação simplesmente gostosa de estar juntos. Comprei sanduíches, batata frita e uns copos de bebida e nos deixamos ficar sentados, comendo na areia. Depois me abracei a Cass e dormimos encostados um no outro durante quase uma hora. Não sei por quê, mas foi melhor do que se tivessemos transado. Quando acordamos, voltamos de carro para onde eu morava e fiz o jantar. Jantamos e sugeri que fossemos para a cama. Cass hesitou um bocado de tempo, me olhando, e ao respondeu, pensativa:
- Não.
Levei-a outra vez até o bar, paguei-lhe um drinque e vim-me embora. No dia seguinte encontrei serviço como empacotador numa fábrica e passei o resto da semana trabalhando. Andava cansado demais para cogitar de sair à noite, mas naquela sexta-feira acabei indo ao West End Bar. Sentei e esperei por Cass. Passaram-se horas. Depois que já estava bastante bêbado, o sujeito que atendia no balcão me disse:
- Uma pena o que houve com sua amiga.
- Pena por quê? - estranhei.
- Desculpe. Pensei que soubesse.
- Não.
- Se suicidou. Foi enterrada ontem.
- Enterrada? - repeti.
Estava com a sensação de que ela ia entrar a qualquer momento pela porta da rua. Como poderia estar morta?
- Sim, pelas irmãs.
- Se suicidou? Pode-se saber de que modo?
- Cortou a garganta.
- Ah. Me dá outra dose.
Bebi até a hora de fechar. Cass, a mais bela das 5 irmãs, a mais linda mulher da cidade. Consegui ir dirigindo até onde morava. Não parava de pensar. Deveria ter insistido para que ficasse comigo em vez de aceitar aquele “não”. Todo o seu jeito era de quem gostava de mim. Eu é que simplesmente tinha bancado o durão, decerto por preguiça, por ser desligado demais. Merecia a minha morte e a dela. Era um cão. Não, para que pôr a culpa nos cães? Levantei, encontrei uma garrafa de vinho e bebi quase inteira. Cass, a garota mais linda da cidade, morta aos vinte anos.
Lá fora, na rua, alguém buzinou dentro de um carro. Uma buzina fortíssima, insistente. Bati a garrafa com força e gritei:
- MERDA! PÁRA COM ISSO, SEU FILHO DA PUTA!
A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada.
do livro "A mulher mais linda da cidade e outras histórias"
da L&PM Pocket
Tradução de Milton Persson
Escritor reconhecido, sendo ou não do movimento do beat, mereceu algumas menções e homenagens de outros artistas...
Na música...
"Pego meu livro, leio Bukowski
Posso receber mais um beijo seu?
Me beije bem aqui na minha tattoo"
Na televisão...
No teatro...
Um abraço para todos os fãs do Velho Safado!
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