Na ida ao shoping encontrei Manuela. Coitada, ainda não
recuperou a forma depois da gravidez. O possível, claro. Aquelas gordurinhas na anca,
é impossível se livrar delas. Delas e desses setenta quilos mal pesados.
Balança simpática, sabe? Eu nunca lhe disse nada. Para quê? Para que dizer? A gente é sincera e ela ainda se ofende e fica
de mal comigo! Estou farta de pagar por ser boa. E me dá uma pena, mulher. O
menino dela, havia de ver, mirradinho, nego, cabelo nenhum, carinha assim
feiinha, feiinha, Deus me perdoe, sem futuro, os bebês não são todos bonitos como
as pessoas querem crer, o dela, pobre Paco, não é. Imagino-o pedreiro,
mecânico, gari... Doutor? Doutor, não. Está destinado, filha. Tem a pobreza
estampada no rosto. Já o meu Júlio... O meu Júlio é um menino bonito, é de
outra casta, olhe para ele, olho claro, loiro, pele branca, e esperto!... Você
nem imagina. Tem só três aninhos e já sabe todas as cores, conta até dez,
conhece os emblemas dos times, gosta do Fluminense, e nada de fralda nem de
mamadeira já. É lindo, não é?
A criança, brincando no pátio, e cuja mãe apontou, era
realmente linda, tinha os cabelos crespos, negros, enrolados de dar dó, a pele
morena, marrom bonito, marrom de chocolate, os olhos caramelizados, doces, um
jeito introspectivo, carinhoso, meio suscitando simpatia, meio suscitando
piedade, tinha aquele sorriso de criança que consegue tudo de nós adultos, que
toca, e eu, entrando na conversa a despropósito, como um tabefe inesperado que
se solta na cara, soltei: qual? Aquele neguinho ali com a fralda suja?,
naturalidade, ser negro não é defeito nenhum, ter a fralda suja com três anos
também é perfeitamente normal e concebível, é uma criança, a mãe hesitou um
instante, parecia surpresa, mas uns segundos depois, entre a tossida e o piscar
de olhos breve da senhora que a acompanhava, arriscou: não, moço, aquele ali de
camiseta polo, loirinho, olhe, ali correndo. Tá vendo?, Eu vi, sim, vi um
menino correndo doido no pátio, armando emboscadas às pobres pombas
domingueiras, moreno, moreno, moreno cacau, sabido, ágil, esperto, lindo, de
fato era lindo, moreno, moreno, moreno cacau, “lindo, seu filho, senhora”, o
disse com a mesma ligeireza com que pensei quantos pais se recusam a aceitar os filhos que
têm.
E lembrei meu avô, Seu Robson, morreu velhinho, pra lá de noventa anos, sem acreditar que minha vó era neguinha, marrom bonito, marrom chocolate, morena, morena, morena cacau.
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